O YouTube é praticamente a babá eletrônica das crianças
Repórter Laura Castanho batendo um papo com a Paola. Crédito: Jonas Santana
Acesso das crianças é móvel e difícil de monitorar
Para Cristiane, não dá para lutar contra a tecnologia. Proibi-la de vez seria algo impossível, e só atiçaria mais o interesse das crianças. A internet, aliás, estaria muito próxima de ser a única referência que elas têm para assistir a filmes, séries e ouvir música. “Eu trabalho com pesquisa de mercado, e quando a gente vai entrevistar o jovens, eles não veem televisão mais. É só YouTube e Netflix.” Será? Segundo o relatório , realizado pelo Comitê Gestor de Internet no Brasil (CGI), “até dezembro de 2017, a audiência do conteúdo infantil disponível na plataforma [Youtube] ultrapassou os 115 bilhões de visualizações por crianças de zero a 12 anos”. O mesmo relatório aponta que, em 2017, 85% da população entre 9 e 17 anos era usuária de internet no país. Isso equivale a 24,7 milhões de pessoas. Delas, 77% usavam a web para assistir a vídeos online. , lançado no final do ano passado, mostra que “88% das pessoas entre 10 e 15 anos assistiram a filmes, programas ou séries pela internet [no período anterior à pesquisa]”. Quase metade das crianças dessa faixa etária, ou 49%, acessa a internet exclusivamente pelo celular.O crescimento no uso do celular — e a diminuição proporcional do uso em desktops e notebooks — é a principal tendência identificada nas duas pesquisas. Mas traz limitações: se, por um lado, o celular tem sido o principal motor da inclusão digital no Brasil nos anos recentes, ele não consegue desempenhar plenamente todas as atividades. E conforme aponta a coordenadora do Kids Online, Luísa Adib Dino, o celular dificulta a mediação dos pais e torna o uso da internet cada vez mais individualizado.
Também segundo ela, no consumo de vídeos online, “a classe econômica faz muita diferença”. “Ainda que a maior parte dos jovens tenha acesso à internet por meio de celulares, e a maior parte relate que acessou vídeos pela internet, a frequência com que eles podem fazer isso varia pela classe social. O acesso via Wi-Fi acaba ficando mais concentrado em determinada classe social do que em outras”.Por que o YouTube faz sucesso entre as crianças
Os vídeos infantis são uma das três categorias com mais visualizações no YouTube brasileiro — as outras duas sendo os vídeos de funk e sertanejo. Na análise de Luciana Corrêa, pesquisadora da ESPM especializada na relação entre as crianças e o YouTube, três fatores explicam o sucesso da plataforma no país. Primeiro, há o aumento no acesso da população geral à internet, possibilitado principalmente pelo uso do celular. Há também o fato do YouTube ser gratuito e acessível a todo instante e em qualquer lugar — seja para matar o tempo até os pais voltarem do trabalho, seja para acalmar a criança que chora em um restaurante. Por fim, há a redução drástica da programação infantil na TV aberta. Programas como a TV Globinho ou os desenhos que passavam na TV aberta quase não existem mais porque comprar espaço publicitário no intervalo dessa grade ficou pouco atrativo para os anunciantes. Isso se deve, por sua vez, à aprovação de uma resolução do Conanda (Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente) emitida em 2014, que . A aplicação prática dessa resolução proíbe as inserções publicitárias de incentivar a criança a pedir que seus pais comprem determinado produto, substituir uma refeição por guloseimas, entre outros discursos. Se, por um lado, a regra tinha em vista proteger a criança do consumismo, por outro ela perdeu sua abrangência com a mudança da TV para o YouTube. No site, a propaganda infantil é mais frequente ( chega a ter sete inserções publicitárias) e mais difícil de regular, apesar de se submeter à mesma lei que regula a propaganda da TV.Com os avanços tecnológicos e por causa da legislação, tem cada vez menos programas para crianças. Crédito: Pixabay
A pesquisadora Luciana Corrêa intui — mesmo sem ter os dados específicos — que o consumo de YouTube seja mais frequente entre as crianças que não têm acesso à TV paga ou streaming. Ela levantou, , 48 eram voltados a crianças. Para ela, fenômenos como os vídeos de slime e não são nada inexplicáveis. “Tem as duas coisas que as crianças mais gostam de fazer: brincar e abrir brinquedo”, afirma. De modo semelhante, ela aponta que a transição pela qual passou o YouTube infantil é parecida com a que houve na TV. Nos dois meios, primeiro havia um adulto apresentando conteúdo infantil; depois, um adulto infantilizado; por fim, uma criança. “A gente tem a possibilidade da criança ser apresentadora [de um canal no YouTube], já que na TV ela não pode ser mais.” Mas o YouTube tem consequências que vão além das mudanças no mercado publicitário. Estudos na geração recente de . A estudante universitária Yasmin Pereira percebeu isso na sua irmã Amanda (nome fictício), de 12 anos. Moradora do Guarujá (SP), a menina é fã de vídeos de maquiagem e k-pop.“O vídeo é uma coisa tão dinâmica que, na hora que ela vai fazer outras atividades, não consegue manter o foco por muito tempo. Piorou muito o rendimento dela na escola”
Para ela, isso se deve ao tempo livre que sua irmã tem depois da escola, mesmo fazendo esporte três vezes na semana. A mãe das duas trabalha como analista química e precisa fazer muitas horas extras no seu emprego novo — não tem como monitorar a filha. O desenvolvimento cerebral também é uma preocupação para Emilly Santana (sem parentesco com Jonas, Glaucia ou Paola, que foram citados anteriormente). Com 22 anos, ela é mãe de uma menina de dois e está concluindo o curso de Lazer e Turismo. Mesmo passando muito tempo fora de casa, ela tenta estar na mesma sala que a filha toda vez que ela assiste a algo no YouTube ou no Netflix infantil. (A televisão aberta é proibida, devido ao receio de esbarrar em algo inapropriado.)Conteúdo infantil virou tão relevante que YouTube lançou a versão Kids. Crédito: Divulgação
“A minha preocupação sempre foi o desenvolvimento dela”, diz Emilly. “Eu não vou colocar desenho se eu vir, por exemplo, que ela fica sentada, extasiada, não pisca, não fala, não se mexe. Eu não gosto”. Segundo o relatório Kids Online, de nove países analisados, o Brasil é o que tem maior consumo de redes sociais (incluindo o YouTube) por crianças de nove a dez anos. Luciana Corrêa vê esse indicador como consequência do número pequeno de crianças que têm acesso a estudo em período integral no país (somente 9% dos alunos matriculados no ensino fundamental, segundo o Inep). Mas também vê um excesso de permissividade dos pais. “Como mãe, eu acho que os pais têm muita preguiça”, opina. Do quê, exatamente? “De desligar o celular e levar as crianças para outras atividades”. Luciana, que tem uma filha de oito anos e a cria praticamente sozinha, diz que também chega tarde em casa — mas que, mesmo assim, tenta ler para a filha toda noite e estimulá-la com brincadeiras analógicas.