Ciência

Vírus da COVID-19 pode permanecer no espermatozoide até 110 dias após a infecção

Pesquisadores identificaram por microscopia a presença do SARS-CoV-2 nas células reprodutivas masculinas, ainda que exames de PCR não tenham detectado o vírus no sêmen; descoberta acende alerta para possíveis implicações na concepção natural e, principalmente, na reprodução assistida
Foto: Jorge Hallak et al./Andrology

Texto: Julia Moióli | Agência FAPESP

Pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) mostraram, pela primeira vez, que o vírus SARS-CoV-2 pode estar presente nos espermatozoides de pacientes até 90 dias após a alta hospitalar e até 110 dias após a infecção inicial, reduzindo a qualidade do sêmen. Os resultados da pesquisa, publicados recentemente na revista Andrology, alertam para a necessidade de se considerar um período de “quarentena” após a doença para quem pretende ter filhos.

Mais de quatro anos após o início da pandemia de COVID-19, já se sabe que o novo coronavírus é capaz de invadir e destruir uma série de células e tecidos humanos, entre eles os do sistema reprodutivo, dos quais os testículos funcionam como “porta de entrada”. Embora diversos estudos já tenham observado sua maior agressividade para o trato genital masculino em comparação a outros vírus e, até mesmo, detectado o SARS-CoV-2 na gônada masculina durante autópsias, o patógeno raramente é identificado em exames de PCR [teste molecular que detecta o material genético viral] do sêmen humano.

Para preencher essa lacuna de conhecimento científico, o estudo atual, pela FAPESP, lançou mão das tecnologias de PCR em tempo real para detecção de RNA e de microscopia eletrônica de transmissão (TEM) para analisar espermatozoides ejaculados por homens convalescentes de COVID-19.

Foram estudadas amostras de sêmen de 13 pacientes infectados e que desenvolveram COVID-19 nas formas leve, moderada e grave atendidos no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina (HC-FM-USP), com idade entre 21 e 50 anos, em um período de até 90 dias após a alta e 110 dias após o diagnóstico. Apesar de todos terem testado negativo para a presença do SARS-CoV-2 no teste de PCR do sêmen, o vírus foi identificado em espermatozoides de oito dos 11 (72,7%) pacientes com doença moderada a grave até 90 dias após a alta hospitalar, o que, segundo os autores, não quer dizer que não esteja presente por mais tempo.

O SARS-CoV-2 também foi identificado em um dos dois pacientes com COVID-19 leve. Assim, entre os 13 infectados, nove (69,2%) tiveram SARS-CoV-2 detectado de forma intracelular nos espermatozoides ejaculados. Outros dois pacientes apresentaram desarranjos ultraestruturais nos gametas semelhantes aos observados nos pacientes em que o vírus foi diagnosticado. Desse modo, os pesquisadores consideram que, ao todo, foram 11 os participantes com a presença viral dentro do gameta masculino.

“Mais do que isso, observamos que os espermatozoides produzem ‘armadilhas extracelulares’ baseadas em DNA nuclear, ou seja, o material genético contido no núcleo se descondensa, as membranas celulares do espermatozoide se rompem e o DNA é expulso de forma extracelular, formando redes semelhantes às descritas anteriormente na resposta inflamatória sistêmica ao SARS-CoV-2”, relata , professor da FM-USP e coordenador do estudo.

Hallak refere-se a um mecanismo imunológico conhecido como NET [armadilha extracelular neutrofílica, na sigla em inglês], que, como o nome sugere, é uma estratégia de defesa usada principalmente pelo neutrófilo, um tipo de leucócito capaz de fagocitar bactérias, fungos e vírus e que compõe a linha de frente do sistema imune. Quando esse mecanismo é ativado, os neutrófilos lançam “redes” para o meio extracelular de modo a isolar, prender, neutralizar e matar agentes invasores. Contudo, as NETs também são lesivas a outros tecidos do organismo, quando hiperativadas (leia mais em: ).

Os resultados da microscopia eletrônica revelaram que os espermatozoides produzem armadilhas extracelulares baseadas em DNA nuclear para neutralizar o agente agressor e se “suicidam” no processo. Ou seja, a célula se “sacrifica” para conter o patógeno – mecanismo conhecido em inglês como suicidal ETosis-like response.

“A descrição, inédita na literatura, de que os espermatozoides atuam como parte do sistema inato de defesa a invasores confere ao estudo uma grande importância. Pode ser considerada uma quebra de paradigma na ciência”, avalia Hallak.

Até então, explica o pesquisador, eram quatro as funções conhecidas dos espermatozoides: trazer o conteúdo genetico do gameta masculino para as proximidades do gameta feminino, fertilizar o gameta feminino, promover o desenvolvimento embrionário adequado e crítico até a 12ª semana de gestação e ser codeterminante no desenvolvimento de diversas doenças crônicas na fase adulta, como infertilidade, hipogonadismo, diabetes, hipertensão, alguns tipos de câncer e doença cardiovascular, entre outras.

Agora, com esta descoberta, uma nova função foi adicionada à lista, além da reprodutiva.

“As possíveis implicações de nossas descobertas para o uso de espermatozoides em técnicas de reprodução assistida devem ser urgentemente consideradas e abordadas pelos médicos e órgãos regulatórios, particularmente na técnica utilizada em mais de 90% dos casos de infertilidade conjugal no Brasil, em laboratórios de micromanipulação de gametas, que é a injeção de um único espermatozoide dentro do óvulo – método conhecido como ICSI [do inglês, intracytoplasmic sperm injection]”, alerta Hallak, que defende adiamento da concepção natural e, particularmente, das técnicas de reprodução assistida por pelo menos seis meses após a infecção por COVID-19, mesmo em casos leves.

Descobertas anteriores

Um dos primeiros membros das comunidades científica e médica a mais cautela nos protocolos de reprodução durante a pandemia, Hallak estuda o impacto da COVID-19 na saúde reprodutiva e sexual desde 2020, quando atuou como médico voluntário na linha de frente do pronto-socorro do HC-FM-USP.

Seu grupo de pesquisa, que envolve colaboradores do Departamento de Patologia da FM-USP, já fez importantes descobertas sobre o tema, como o fato de o sexo masculino per se ser um fator de risco para maior mortalidade e gravidade da infecção pelo SARS-CoV-2. Uma das hipóteses está ligada ao fato de os testículos apresentarem uma grande quantidade de receptores ACE2 (proteína usada pelo vírus para invadir a célula humana) e da proteína TMPRSS2 (responsável pela ligação do vírus aos receptores ACE2), enquanto, nas mulheres, os ovários têm somente os receptores ACE2.

Em outro , realizado com membros da Divisão de Clínica Urológica do Hospital das Clínicas da FM-USP, o grupo constatou uma queda acentuada na libido e na satisfação sexual geral, além de aumento no consumo de pornografia e frequência masturbatória, em profissionais de saúde em decorrência da pandemia.

A equipe da USP ainda que os testículos são órgãos-alvo potenciais para a infecção pelo vírus, que causa epididimite subclínica (inflamação do epidídimo, túbulo de 5 a 6 metros de comprimento, externo e em localização posterior aos testículos, essencial para o amadurecimento, aquisição de capacidade de fertilização do óvulo e armazenamento dos espermatozoides). E , de forma inédita, a gravidade das lesões testiculares associadas à COVID-19.

No momento, o grupo de médicos e cientistas do HC-FM-USP, sob a coordenação do professor Carlos Carvalho, avalia os efeitos tardios da infecção pelo SARS-CoV-2 no grupo de mais de 700 pacientes acometidos e que foram avaliados, inicialmente, por meio de um Projeto Temático  financiado pela FAPESP (leia mais em: ).

O artigo Transmission electron microscopy reveals the presence of SARS-CoV-2 in human spermatozoa associated with an ETosis-like response pode ser lido em: .

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