Texto: Ricardo Zorzetto/Revista Pesquisa Fapesp
O assunto é espinhoso e costuma despertar posições extremas. Talvez por esses motivos e por ser qualificado como crime pela legislação brasileira, o aborto permaneceu um tema velado por muito tempo e só recentemente passou a ser mais discutido. Apesar da proibição legal e da frequente condenação moral ou religiosa, o fato é que ele ocorre e é comum, praticado em boa parte das vezes de modo inseguro (sem o auxílio de profissionais da saúde e os meios adequados), o que coloca em risco a vida das mulheres. A estimativa mais recente e confiável, obtida por meio de uma técnica que protege a identidade da entrevistada, indica que a cada ano são realizados cerca de 500 mil abortos no Brasil. Em quase metade dos casos, mais especificamente 43%, surgem complicações que exigem a internação da mulher em hospitais ou prontos-socorros para concluir o procedimento.
“O aborto é um problema de saúde pública que afeta a mulher comum, em particular as brasileiras mais jovens e mais vulneráveis, como as mulheres negras”, afirma a antropóloga Debora Diniz, da Universidade de Brasília (UnB), uma das coordenadoras da Pesquisa Nacional do Aborto (PNA). Atualmente em sua terceira edição, esse levantamento, repetido em média a cada cinco anos, tenta compreender a magnitude do problema no país. Na PNA mais recente, entrevistadoras foram a 125 municípios brasileiros em novembro de 2021 coletar informações sociodemográficas de 2 mil mulheres com idades entre 18 e 39 anos. Na ocasião, também entregavam a cada participante um questionário com sete perguntas sobre aborto, que era preenchido e depositado por ela própria em uma urna lacrada, para evitar a quebra do sigilo. Sorteadas de modo aleatório para fazer parte do levantamento, essas mulheres representam a população feminina brasileira em idade fértil que sabe ler e escrever e vive nas cidades.
Os resultados do levantamento, aceitos para publicação na revista Ciência & Saúde Coletiva, mostram que o aborto é um evento comum entre as brasileiras: uma em cada sete mulheres de 40 anos já fez ao menos um aborto. “Qualquer problema que afete tamanha proporção de pessoas é uma questão de saúde gigantesca para um país”, enfatiza o sociólogo Marcelo Medeiros, professor visitante na Universidade Columbia, nos Estados Unidos, coautor do estudo.
Essa proporção, no entanto, parece estar diminuindo. Essa taxa era de aproximadamente 20% nos levantamentos de 2010 e 2016 e caiu para 15% em 2021. Embora as entrevistadas tivessem entre 18 e 39 anos de idade, os pesquisadores usam uma ferramenta estatística para fazer uma projeção da taxa de abortos aos 40 anos e corrigir eventuais distorções nos dados causadas pelo envelhecimento da população e pelo fato de o aborto ser um fenômeno cumulativo.
Em 2021, pela primeira vez, a sondagem avaliou a idade em que as participantes realizaram o primeiro aborto induzido e revelou que esse é um problema que começa cedo na vida das brasileiras: 52% haviam interrompido uma gestação antes dos 19 anos. “A gravidez é um problema social e econômico importante para as jovens nessa faixa etária, porque impede de continuar os estudos, prejudica a formação profissional e restringe o acesso ao mercado de trabalho”, explica Medeiros.
De acordo com a PNA, quem faz aborto é hoje a mulher comum. Todas as edições da pesquisa mostraram que uma proporção praticamente igual de brancas, pretas e pardas já realizou aborto. Em 2021, era da ordem de 10% a parcela de mulheres de cada um desses grupos que havia interrompido uma gestação. Também se aproximava de 10% a proporção de católicas, evangélicas ou protestantes ou mulheres sem religião que já haviam abortado (ver gráficos abaixo).
Alexandre Affonso / Revista Pesquisa FAPESP
Apesar de o cenário indicar uma tendência de redução na proporção de mulheres que realizam aborto, os números são vistos com cautela pelos próprios pesquisadores, porque a queda pode ser menor do que aparenta. A margem de erro em cada levantamento é de dois pontos percentuais para mais ou para menos e pode haver uma oscilação estatística de uma edição para outra da pesquisa, o que tornaria os valores mais próximos entre si. Existe ainda a possibilidade de os dados sofrerem influência de uma mudança na estrutura da população. Nos 11 anos que separam a primeira da última PNA, a taxa de fecundidade da brasileira diminuiu de quase 1,9 filho por mulher para 1,5 e, com menos gestações, haveria menos aborto. Alguns estudos apontam ainda para um aumento no uso de métodos contraceptivos de longa duração na América Latina.
Se a evolução registrada nas três PNA for real, ela pode indicar que o Brasil segue uma tendência verificada nas últimas décadas nos países mais desenvolvidos, oposta à que aconteceu na América do Sul. Uma análise das estatísticas sobre aborto registradas entre 1990 e 2014 em 186 países mostrou que, em um quarto de século, a frequência de interrupção de gravidez diminuiu expressivamente nas nações mais desenvolvidas – caiu de, em média, 46 abortos em cada grupo de mil mulheres em idade reprodutiva para 27 por mil. No mesmo período, segundo os dados publicados em 2016 na revista The Lancet, essa taxa cresceu de 43 para 47 por mil na América do Sul.
A interrupção intencional da gravidez é um fenômeno comum no mundo. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que, a cada ano, ocorram 73 milhões de abortos induzidos, o equivalente a um terço das gestações. A agência sanitária internacional considera o procedimento seguro “se for realizado com os métodos adequados para a idade gestacional e por uma pessoa treinada”. Em 45% dos casos, no entanto, ele ocorre sem a assistência adequada e coloca em risco a vida da mulher. A quase totalidade (97%) dessas interrupções inseguras acontece nos países em desenvolvimento.
No Brasil, de acordo com a evolução registrada nas três edições da PNA, a gravidade das complicações de saúde decorrentes do aborto aparentemente está diminuindo. Em 2010, 55% das mulheres que realizaram aborto precisaram ser internadas. Em 2021, essa proporção foi de 43%. Ainda assim, um número importante, que representa cerca de 200 mil hospitalizações por ano. “Isso gera um impacto para as mulheres e um custo elevado para o sistema público de saúde”, lembra Diniz.
“A diminuição na taxa de complicações sugere uma possível transição do uso de métodos mais perigosos, que envolvem a manipulação do útero, como o uso de agulhas e outros objetos, para outras estratégias mais seguras, que utilizam medicamentos, ainda que obtidos de maneira ilegal”, comenta o ginecologista e obstetra Luiz Francisco Baccaro, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que não fez parte da PNA. Ele coordenou a participação do Brasil em um estudo recente da OMS que analisou a severidade das complicações decorrentes do aborto em 70 hospitais de seis países da América Latina (20 deles brasileiros). Publicados em 2021 na revista BMJ Global Health, os resultados sugerem que a maior parte dos casos que chegam aos serviços de saúde no Brasil e no Peru é menos grave do que os atendidos na Argentina, Bolívia, República Dominicana e El Salvador – os dados foram coletados antes da legalização do aborto na Argentina no final de 2020. No Brasil, 83% são leves, pequenos sangramentos, e 14% moderados, em geral hemorragias um pouco mais intensas.
Ainda que o grau das complicações varie de um país para outro por características dos sistemas de saúde locais, a OMS estima que 13% das mortes maternas – aquelas que ocorrem durante a gestação ou após o seu término – sejam consequência de abortos inseguros. A solução para o problema, na opinião dos especialistas, passa pela oferta de condições seguras para a interrupção da gravidez, algo que no Brasil exigiria uma mudança na legislação, além de acesso ao planejamento reprodutivo para evitar gestações não desejadas.
O Código Penal brasileiro qualifica o aborto como um crime contra a vida. A mulher que opta por fazê-lo pode ser condenada a até três anos de prisão e quem a auxilia (seja um profissional da saúde ou não) pode pegar até 10 anos em regime fechado. Essa lei de 1940 só prevê duas condições em que a punição não é aplicada: no caso de gravidez decorrente de estupro ou se o procedimento for o único meio de salvar a vida da mulher. Desde 2012, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) também autoriza a interrupção da gravidez nos casos de anencefalia, quando o feto não desenvolve completamente o cérebro ou outros órgãos do encéfalo e não tem condições de sobreviver após o parto.
Apesar dessa possibilidade, a proporção de abortos legalmente permitidos é muito inferior à esperada. Em um levantamento publicado em 2020 nos Cadernos de Saúde Pública, o médico sanitarista Bruno Cardoso, da Secretaria Municipal da Saúde do Rio de Janeiro, e colaboradores analisaram os dados de nascimento, morte e internação no Sistema Único de Saúde (SUS) no período 2008-2016 e constataram que, a cada ano, são feitos cerca de 1.600 abortos por indicação médica ou legal. Esse número é bem inferior às gestações decorrentes de estupro (estimadas em 18 mil por ano) e que, portanto, poderiam ser legalmente interrompidas.
Uma norma técnica de 2005 do Ministério da Saúde oferece aos profissionais da saúde orientações de como tratar e acolher os casos de aborto. Segundo o documento, “o abortamento seguro, nas razões legalmente admitidas no Brasil, e o tratamento do abortamento constituem direito da mulher que deve ser respeitado e garantido pelos serviços de saúde”.
Essa diretriz, no entanto, é insuficiente para que o serviço seja oferecido à população mesmo nas situações previstas em lei. A psicóloga Marina Gasino Jacobs, durante o doutorado, realizado na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) sob a orientação da sanitarista Alexandra Boing, procurou em três bases de dados do SUS informações sobre estabelecimentos cadastrados para fazer ou que tinham feito aborto legal em 2019. Encontrou 290 serviços de saúde, localizados em apenas 200 dos 5.568 municípios brasileiros. Segundo os dados publicados em 2021 nos Cadernos de Saúde Pública, 40% deles se concentravam na região Sudeste. “Em 2019, 58,3% das mulheres em idade fértil viviam em municípios em que o aborto previsto em lei não era ofertado”, escreveram as autoras.
Uma questão importante é como reduzir os abortos, em especial os inseguros? A saída, segundo estudiosos do assunto, é educar a população para exercer a sexualidade de modo responsável e informá-la sobre os métodos contraceptivos, além de torná-los disponíveis. “Todo mundo faz sexo. Temos de parar de tratar esse tema como tabu e passar a falar na escola, na televisão, na igreja, sobre como prevenir a gravidez”, afirma Medeiros. Ele defende a necessidade de que os homens assumam uma parte da responsabilidade no controle da reprodução. “Se os homens usassem camisinha em todas as relações, a taxa de gravidez indesejada cairia próximo a zero e, consequentemente, os abortos diminuiriam”, conclui.
Especialistas afirmam ainda que é necessário descriminalizar o aborto. Vários estudos indicam que tornar o procedimento legal e oferecer à mulher a possibilidade de realizá-lo leva à redução no número de casos. “O número cai porque as mulheres são acolhidas e passam a ter acesso a métodos contraceptivos e orientação de como evitar uma nova gestação não desejada”, diz a epidemiologista Rosa Domingues, da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, autora de revisões recentes sobre a realização de aborto legal e ilegal no Brasil. “A criminalização do aborto não resolve o problema. Só o torna inseguro”, afirma Diniz.
Artigos científicos
DINIZ, D. et al. . Ciência & Saúde Coletiva. No prelo.
SEDGH, G. et al. . The Lancet. 16 jul. 2016.
ROMERO, M. et al. . BMJ Global Health. Ago. 2021.
CARDOSO, B. B. et al. Cadernos de Saúde Pública, v. 36, suplemento 1. 2020.