Luz síncrotron e a perovskita

Na investigação aprofundada do material, uma equipe do Cine foi pioneira ao observá-lo com ajuda de uma das fontes de luz síncrotron do Sirius, operada pelo Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS) do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas. O Cine é formado por pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), da USP e do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen).

“A pesquisa sobre o uso de perovskita na área de energia solar fotovoltaica foi a que mais cresceu no mundo e fazer experimentos com a luz síncrotron permitiu nos posicionarmos em um meio supercompetitivo? conta a química Ana Flávia Nogueira, diretora do Cine e professora do Instituto de Química da Unicamp. Desde 1996 ela trabalha com materiais fotovoltaicos emergentes e, em 2015, passou a investigar a classe das perovskitas.

A infraestrutura científica do CNPEM permitiu que os pesquisadores fizessem um mapeamento do material em escala nanométrica. “Levamos o equipamento que produz o filme de perovskita ?um disco rotatório chamado de spin-coater, parecido com o utilizado para fazer CD ?para a linha de raios X? conta Nogueira. Foi a primeira vez que isso foi feito. Mas qual é a vantagem desse experimento, chamado in situ? “Enquanto o filme de perovskita se formava, os raios X atingiam a amostra e forneciam informações importantes sobre a estrutura e sobre como o filme se cristalizava ao longo das etapas? conta Nogueira.

Esse e outros ensaios para analisar a degradação do material também por técnicas in situ no Sirius deram grande visibilidade aos pesquisadores do Cine ?tanto que foram convidados a escrever um artigo de revisão sobre o assunto para o periódico científico Chemical Reviews. O texto com 77 páginas foi publicado no início de 2023. “O convite para elaborar um artigo de revisão para uma revista de altíssimo impacto coroa os trabalhos que fizemos nos últimos anos? destaca Nogueira. Além de investigar a perovskita para uso em células solares, o grupo também estuda o emprego do material em dispositivos emissores de luz, como LED e lasers.

Para entender o funcionamento

No Sirius, os experimentos agora têm foco em entender o funcionamento da célula solar de perovskita ?e não apenas no material em si. São os chamados experimentos operando. Um dos desafios desse tipo de análise é que a própria radiação síncrotron pode causar transformações indesejáveis no material.

“Estamos investigando os efeitos da dose de radiação necessária para estudar esses dispositivos e como mitigá-los. Já criamos dispositivos que permitem simular as condições de operação da célula solar fotovoltaica e temos os primeiros resultados? ressalta o físico Helio Cesar Nogueira Tolentino, chefe da Divisão de Matéria Heterogênea e Hierárquica do LNLS. “Queremos achar as condições de trabalho ideais para obter a informação, usando a luz síncrotron e sem degradar o material fotovoltaico. Ou degradando, mas de maneira controlada.?/p>

Tolentino explica que a estrutura cristalina da perovskita se assemelha ao formato de um cubo, podendo variar em razão do método de preparação ou das rotas de síntese adotadas. No primeiro experimento operando, os pesquisadores observaram o efeito da luz solar sobre a estrutura atômica do material. “Ainda não temos uma interpretação fechada, mas há evidências de que a variação da iluminação altera a estrutura do material.?/p>

Entre possíveis soluções apresentadas pelos pesquisadores brasileiros para corrigir as características indesejáveis do material para as finalidades pretendidas, há aditivos, novas moléculas, diferenças no processo de produção do filme e até mesmo a aplicação de uma fina camada de um filme de perovskita bidimensional (2D) em cima de uma camada tridimensional (3D). Mas a instabilidade apresentada pelo material representa apenas parte dos desafios tecnológicos. Manter a eficiência energética conquistada em laboratório nas pequenas células, numa escala maior, também é um quebra-cabeça para os cientistas.

“Muitas vezes, ao tentar transpor a escala das células, o filme não fica homogêneo? explica Nogueira, da Unicamp. “O processo de cristalização que ocorre quando a perovskita está se formando é diferente ao de outros materiais usados no setor fotovoltaico.?/p>

Segundo Graeff, os pesquisadores buscam encontrar formulações e processos que tornem a tecnologia viável do ponto de vista econômico. “Precisamos de processos produtivos robustos, que possam ser utilizados em alta escala. Nesse ínterim, estamos aprendendo muita física e química básica. Esses são materiais novos e complexos na área de dispositivos eletrônicos? diz o pesquisador da Unesp de Bauru. “A eletrônica dos painéis atuais foi toda baseada em um material muito simples e estável que é o silício. Agora temos um material formado por diferentes elementos químicos e estrutura complexa.?/p>

Linha de produção de células do tipo tandem na fábrica da Oxford Photovoltaics, na AlemanhaOxford PV

A pesquisa na área traz bons exemplos de uma fecunda colaboração entre cientistas teóricos e experimentais. Com as simulações feitas em computador, os teóricos são capazes de projetar estruturas jamais feitas em laboratório ou de economizar tempo e dinheiro na seleção dos elementos a serem testados nos experimentos.

“Analisamos diferentes materiais e tentamos inferir ou aprender sobre as suas propriedades? diz Dalpian, que contabiliza ao menos cinco artigos publicados com o grupo experimental da UFABC. “Há uma colaboração muito produtiva. Normalmente, são os pesquisadores experimentais que nos fazem pedidos, mas, nesse caso, é melhor do que isso, porque eles nos ouvem também. Uma vez dissemos que, se pusessem ferro na perovskita, esse material traria propriedades magnéticas interessantes. Eles fizeram isso e o resultado gerou um artigo interessante? conta Dalpian.

No Cine, teóricos e experimentais trabalham juntos em várias frentes. Uma delas, é a busca de alternativas que substituam o chumbo (elemento tóxico) na composição da perovskita. “Há o interesse de reduzir ou eliminar totalmente a quantidade de chumbo presente nessas estruturas? afirma o físico Juarez L. F. Da Silva, do Instituto de Química de São Carlos (IQSC), da USP, e coordenador do programa de ciência computacional de materiais do Cine.

“A simulação computacional permite o estudo de grande quantidade de materiais para substituir o elemento nas perovskitas de baixa dimensionalidade ?como estanho, germânio ou combinações de duas espécies químicas? explica Da Silva. Há um conjunto de parâmetros dos quais o material tem que estar o mais próximo possível. “Usamos as informações dos experimentais para verificar quais materiais têm esse potencial.?/p>

Outra frente, liderada pelos experimentais do Cine, investiga a interação de moléculas com as superfícies das perovskitas. As simulações permitem observar que mecanismos podem contribuir para o processo que degrada o dispositivo, detalha Da Silva. “Na célula solar, o fio metálico usado como contato para levar a corrente elétrica interage com a perovskita gerando um processo de difusão de espécies químicas de um lado para outro. Dependendo da situação, elas podem desestabilizar a estrutura do dispositivo.?/p>

De acordo com Dalpian, haverá espaço em várias frentes diferentes para as células solares de perovskita, desde que ocorra uma mudança de paradigma nessa área. “Há uma visão de que a célula solar deve durar de 20 a 25 anos. Mas não precisa ser assim. Se a célula for tão mais barata, custando, por exemplo, US$ 0,40, ela pode ser trocada quando perder a eficiência, como se faz hoje com as lâmpadas? diz Dalpian. “Nesse caso, é preciso que haja um ecossistema para cuidar da reciclagem dos painéis, minimizando um impacto ambiental associado à sua produção.?O objetivo da pesquisa com células de perovskita, destaca o pesquisador, não é substituir por completo os módulos de silício, mas incorporar na indústria de energia solar outro material com propriedades e características vantajosas.