A corrida espacial agora é privada; e as startups brasileiras lutam para o Brasil não ficar para trás
No último dia de fevereiro, o Brasil lançou o satélite Amazônia-1 do Centro Espacial Satish Dhawan, na Índia, inaugurando um marco importante na história espacial do país. O objetivo é monitorar o desmatamento na Amazônia, bem como a região costeira, reservatórios de água, desastres ambientais, entre outras aplicações, conforme . A previsão é que mais dois satélites sejam lançados como parte da missão.
O projeto foi concebido lá no início dos anos 2000 e foram necessários mais de R$ 300 milhões para desenvolver o satélite e mais R$ 20 milhões para contratar o veículo indiano que o colocou em órbita. Apesar de contarmos com a base de Alcântara, que economizaria até 30% de combustível devido à sua localização privilegiada na região do Equador, o satélite é grande e pesado demais para decolar do centro de lançamentos no Maranhão — de colocar o Amazônia-1 em órbita.
As informações refletem a principal crítica feita pelos empreendedores do setor espacial: o Brasil está atrasado e utiliza um modelo de negócios custoso, pouco eficiente e ultrapassado. O que as startups defendem é uma revolução nesse campo, liderada por um movimento conhecido como “new space”.
O Gizmodo Brasil conversou com empreendedores e investidores para entender como está o ecossistema espacial no país e quais os principais desafios para fazer esse novo modelo de negócios, inaugurado por Elon Musk, decolar por aqui.
Como Elon Musk inaugurou a era do “new space”
Para entender os conceitos de “old space” e “new space”, Lucas Fonseca, CEO da , diz que é preciso olhar para a história.
Toda a história da astronáutica, desde que o homem decidiu ir pra Lua com o Sputnik lá na década de 60, sempre foi muito baseado em decisões políticas. Claro que os governos queriam desenvolver tecnologia, mas o principal motivo da corrida espacial era uma corrida geopolítica, e isso impactou muito a área do espaço empresarial. O que ocorreu ao longo de quatro décadas foi governos ditarem o que queriam fazer, quais eram suas agenda, e encomendarem as tecnologias de empresas.
Isso mudou quando Elon Musk decidiu utilizar o para investir no setor espacial. Oswaldo Loureda, fundador da , diz que “a SpaceX não foi só inovadora na tecnologia em si, mas ela está criando um ambiente novo que permite pequenas empresas a entrarem nesse mercado ao provocar uma transparência maior no setor”. Ele lembra das audiências realizadas nos Estados Unidos, quando empresas como Boeing e Lockhead, que financiavam políticos em troca de apoio em projetos na área espacial.
Fonseca explica que apesar do termo “new space”, as empresas que participam dessa economia são startups, já que elas “continuam seguindo os mantras principais do Vale do Silicio que é ter uma solução baseada em tecnologia, um modelo de negócio que busca uma resposta exponencial de crescimento, e uma gestão enxuta de poucas pessoas que trabalham no fundo da garagem criando uma ideia e colocando ela pra rodar”.
O fundador da Airvantis diz que a economia do old space ainda é muito forte, mas que o mundo já está passando pela transição para o new space. O Brasil, no entanto, parece não acompanhar o movimento na mesma velocidade que outros países. Falamos muito do “boom” das startups, como fintechs e outros aplicativos que se tornaram bilionários em pouco tempo, mas quantas startups espaciais brasileiras você conhece?
O new space ainda engatinha por aqui e parte disso se deve à força que o old space ainda mantém. O problema é que virar as costas para as mudanças do setor espacial pode custar caro para o país.
Por que o old space é nocivo ao país
A Acrux foi a primeira startup espacial que surgiu por aqui. Quando fundou a empresa lá em 2008, Oswaldo Loureda conta que encontrou os mesmos problemas que Elon Musk viu nos Estados Unidos. Segundo ele, “existem muitas atividades espaciais no Brasil hoje, mas elas não correspondem à grandeza do nosso país”. O lançamento do satélite Amazônia-1 e de outros projetos que já foram feitos são exemplos de como o old space pode prejudicar o ecossistema espacial.
Os satélites CBERS, por exemplo, que foram desenvolvidos em parceria com a China e que já estão em órbita, poderiam ser substituídos por satélites menores, mais baratos e com melhor resolução, explica Loureda. Além do produto não ser o mais eficiente, ele ainda ressalta que toda a estrutura das empresas do old space torna os projetos desnecessariamente caros.
Você tem o presidente da empresa e os diretores ganhando salários astronômicos, você tem o revisor do revisor do revisor e, no final, quem faz o projeto mesmo é o técnico que está ali na base. Então, qualquer apontador de lápis que você vai fazer numa empresa dessas sai por um preço absurdamente alto. Enquanto isso, empresas como a do Lucas Fonseca (a Airvantis), a , a , que empregam entre cinco e sete pessoas, conseguem colocar ele em órbita em questão de dois ou três anos e custando algo em torno de R$ 2 milhões.
A Acrux, especializada em foguetes, também luta para conseguir investimentos e apoio do governo. Loureda diz que a empresa já propôs um cronograma de 17 lançamentos da base de Alcântara, no Maranhão, e agora “está na mão da Força Aérea aprovar ou não”. Uma das missões da empresa, e que não contou com nenhum investimento do governo, está programada para o fim deste ano. A ideia é voar experimentos de diversas instituições, como a Universidade Federal do Maranhão, uma universidade do Chile, a University College of London, entre outras.
As oportunidades do new space no Brasil
Sidney Nakahodo, fundador da e professor de Relações Internacionais na Universidade de Columbia, afirma que é preciso pensar em como o espaço se integra em uma estratégia de desenvolvimento do país. No caso do Brasil, ele acredita que o new space é fundamental, podendo criar uma série de soluções com impacto imediato.
O setor da agricultura, por exemplo, já utiliza tecnologias espaciais de forma intensiva. Dados de satélite são uma maneira imediata de melhorar a produção da lavoura. Os equipamentos hoje são tão sofisticados que você consegue saber o nível de umidade de uma lavoura e prever qual vai ser a sua colheita nos próximos seis meses com imagens de satélite.
Segundo o professor da Columbia, outra área que o Brasil apresenta potencial é a de conservação e desenvolvimento sustentável. Colocar pontos de internet espalhados pela floresta Amazônica poderia permitir o uso de sensores para identificar espécies nativas por meio de ruídos, além monitorar tudo o que acontece dentro da floresta em áreas que são de pouco acesso e auxiliando, inclusive, no patrulhamento das fronteiras por meio de câmeras e microfones de alta sensibilidade.
“É importante ressaltar que o espaço não vai ser um setor que vai resolver todos os problemas do país, mas ele pode oferecer uma série de soluções que se integram a uma estratégia em áreas específicas”, conclui Nakahodo.
De olho no futuro, Lucas Fonseca, da Airvantis, descreve oito verticais em que as startups espaciais podem atuar nessa economia de new space:
Oswaldo Loureda, da Acrux, afirma que investir em startups espaciais têm alto retorno público. “Dentro da área espacial, a gente tem uma conta que diz que a cada R$ 1 investido, a gente retorna entre R$ 10 a R$ 20 reais para a economia do país, seja na forma de salários, de impostos, de faturamento, ou de crescimento de valor agregado das empresas”.
Outro benefício citado por Sidney Nakahodo, da Universidade de Columbia, é a inspiração. Afinal, quem não acompanhou com entusiasmo o pouso da Perseverance em Marte? “Espaço é um tema que atrai muito a juventude e esse jovens que veem a SpaceX, os astronautas voltando à Lua, vão se sentir inspirados a seguir nessas áreas de engenharia e matemática”.
Mas se existem tantas oportunidades assim, por que o setor espacial não consegue decolar no Brasil? A explicação, de acordo com os nossos entrevistados, é falta de investimentos, negligência do governo e uma falta de coordenação do próprio mercado.
Os desafios das startups espaciais brasileiras
Um dos principais desafios das startups espaciais é convencer investidores. “Quando um investidor recebe uma proposta para montar uma padaria ou uma sorveteria, é muito difícil que ele não tenha algum retorno. E mesmo que não dê lucro, se você colocou R$ 1 milhão de reais numa padaria, por exemplo, você vai ter o imóvel, o equipamento, então você dificilmente perde esse dinheiro. Mas o setor espacial é uma área em que o risco é muito grande”, explica Loureda, da Acrux.
Fonseca, da Airvantis, também ressalta que os investidores não devem ter a mesma mentalidade de quando apostam em um aplicativo de entrega de comida, por exemplo. “É muito difícil ter um retorno em três anos na área espacial. […] A própria SpaceX deu prejuízo por bastante tempo, mas hoje é a empresa que mais lança foguetes no mundo, com um misto de atividades puramente privadas e outras em conjunto com o governo”. Não é à toa que Elon Musk chegou a ser o .
Raphael Roettgen, fundador da empresa de investimentos , com foco no setor espacial, conta que quase nenhum investidor da área viu retorno ainda porque é cedo demais. “Uma pergunta muito frequente que ouvimos dos nossos potenciais investidores é: onde estão as histórias de sucesso, onde estão as pessoas que ganharam, 30, 50, 100 vezes o investimento? Eu sempre dou a resposta: é cedo demais.” Segundo ele, existem as exceções, como é o caso da SpaceX, na qual ele próprio já teve a oportunidade de investir, mas a maioria das empresas não têm idade suficiente para gerar um retorno.
Por enquanto, a E2MC ainda não investiu em nenhuma startup brasileira, mas Roettgen afirma que nosso ecossistema espacial tem grande potencial. Ele cita que a principal vantagem de apostar no Brasil é o custo. “É possível conseguir mão de obra qualificada custando quase o décimo de um engenheiro do Vale do Silício. É realmente muito barato e eu espero que no futuro a gente possa aproveitar o fato de o Brasil ter provavelmente o melhor centro de lançamentos do mundo em termos de localização”.
Um desafio para investidores estrangeiros, como é o caso de Roettgen, que é alemão, é a incerteza. De acordo com o fundador da E2MC, uma venture capital do exterior se sente mais confortável em apostar em uma empresa sabendo que há investidores locais apoiando também. Para Oswaldo Loureda, da Acrux, o governo é essencial para impulsionar os aportes privados. Segundo ele, é o dinheiro de subvenção, ou “capital semente”, oferecido pelo governo sem nenhuma contrapartida envolvida que permite que as startups deem o passo inicial para provar o seu potencial e, assim, atraírem as empresas de capital de risco.
Por que o investidor vai colocar dinheiro em uma empresa que nem o governo aposta, sendo que a área espacial já é um negócio de risco? Então, fica um círculo vicioso. As empresas do old space ficam sobrevivendo às custas do dinheiro de subvenção; elas reclamam que vão falir e pegam milhões de um capital que deveria ser destinado às startups. As empresas não decolam porque ficam ali, sendo alimentadas dentro daquele círculo, enquanto as startups nascem, sobrevivem por dois, três anos, e morrem.
Roettgen afirma que, além de reduzir as burocracias, o governo brasileiro deveria implementar medidas de fomento às startups espaciais, da mesma forma que já ocorre em outros países. Ele sugere olhar para exemplos como Luxemburgo e Emirados Árabes Unidos, que desenvolveram leis para regular o setor, além de oferecer bolsas e criar incubadoras focadas em startups espaciais.
Diante dessa falta de apoio e de coordenação do setor espacial, as empresas decidiram se juntar para criar a . No total, são 13 associados, com Loureda, da Acrux, ocupando o cargo de vice-presidente e Fonseca, da Airvantis, o cargo de conselheiro financeiro. O objetivo da associação é representar as startups do setor, conectando empresários, governo e investidores, além de promover a cultura espacial no Brasil.
Por que investir no espaço
Sidney Nakahodo, da Universidade de Columbia, fala da necessidade de a sociedade entender que investir no espaço não é uma extravagância. “A gente sempre ouve essa questão de por que investir no espaço se já temos tantos problemas no dia a dia, como a pobreza, o desemprego? É muito importante salientar que o espaço não está desconectado da nossa realidade. Pelo contrário, a gente só vai conseguir dar respostas para esses problemas de curto, médio e longo prazo se a gente investir em espaço e pensar no setor da mesma forma que a gente pensa em educação, ciência e tecnologia.”
O fundador da E2MC, Raphael Roettgen, diz que vem tentando fazer a sua parte e que esse desafio de educação não é exclusivo do Brasil. Ele já publicou um livro na Alemanha, seu país de origem, falando sobre as tendências do setor espacial, além de oferecer um curso de empreendedorismo espacial e manter um podcast quinzenal sobre o assunto. Apesar de nenhuma dessas atividades gerar um retorno financeiro, o investidor ressalta a importância de promover as oportunidades desse mercado. “Eu acho que o Brasil tem muitos dos ingredientes que você precisa ter para fazer do setor espacial uma história de sucesso. Agora, cabe a nós, todas as pessoas envolvidas e que gostam do setor, se juntar e promover isso”.
Para Lucas Fonseca, a hora de o Brasil acordar para o movimento do new space é agora, já que essa não é apenas uma tendência passageira; ele será crucial para a economia dos países que saírem na frente:
Tem uma frase de um cientista indiano que diz que toda empresa no mundo já é espacial, só não sabe disso. Todo mundo já faz uso de uma tecnologia espacial e cada vez mais a gente vai ver a economia migrando pro espaço. […] Vai chegar uma hora que a economia espacial vai se tornar intrínseca, como se fosse a economia de commodities do nosso dia a dia. E aí o ponto que eu levanto é: o que o Brasil vai querer ser nesse momento que tudo isso acontecer? A gente vai querer ser mero espectador ou um ator dessa nova economia? E se colocando nesse papel de querer ser um novo ator como outros países já estão se colocando nesse momento, cabe a nós começar a realizar, a agir agora. Não adianta quando tudo já tiver acontecido e o mundo todo tiver se adequado a essa nova realidade, o Brasil querer fazer parte disso.