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Ser humano preda mais espécies do que outros 19 grandes carnívoros

Quase 15 mil vertebrados sofrem o impacto da ação humana por meio da caça, pesca ou captura para criação em cativeiro

Ser humano preda mais espécies do que outros 19 grandes carnívoros

Imagem: Unsplash/Reprodução

Texto: Felipe Floresti/Revista Pesquisa Fapesp

Com uma altura que pode chegar a quase 80 centímetros e 2 metros de uma ponta da asa a outra, a coruja bufo-real (Bubo bubo) é a maior ave de rapina noturna do mundo e um dos grandes predadores do planeta. Em sua ampla área de distribuição, que inclui quase toda a Europa e a Ásia, ela se alimenta de 552 espécies de vertebrados – em especial, pequenos mamíferos e aves. Seu cardápio é mais variado que o de outros 18 grandes caçadores analisados em um estudo publicado em junho na revista Communications Biology. A diversidade de presas desse corujão, porém, fica ainda muito distante daquela capturada pelo maior predador da atualidade, o Homo sapiens. No mesmo ambiente em que vive o bufo-real, o ser humano preda 3.007 espécies de vertebrados, nem sempre para comer.

Com quase 7,9 bilhões de indivíduos espalhados por todos os continentes e com técnicas de caça e pesca cada vez mais eficientes, a espécie humana produz um impacto direto sobre 14.663 espécies de vertebrados, de acordo com o trabalho, realizado por um grupo internacional de pesquisadores do qual participou o biólogo brasileiro Mauro Galetti, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Rio Claro. A variedade de presas do Homo sapiens corresponde a quase um terço das 46.755 espécies de vertebrados catalogadas e avaliadas pela União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN) – no mundo, são conhecidas cerca de 80 mil espécies de vertebrados, o grupo de animais que inclui os mamíferos, os répteis, os anfíbios, os peixes e as aves. “Esse trabalho é um alerta sobre o nosso papel de enorme predador no planeta”, afirma Galetti. “Várias das espécies que exploramos estão entrando em extinção.”

Bolsa de pele. Imagem: Metropolitan Museum of Art

Para ter uma ideia desse poder predatório, os pesquisadores compararam a diversidade de presas afetadas pelo ser humano por meio da caça, da pesca ou da captura para criação em cativeiro ou venda com a consumida pelos grandes carnívoros na área em que vivem. O Homo sapiens interfere na vida de 3.202 espécies de vertebrados nos mesmos ambientes da África em que os leões caçam 40 delas. Ou de 2.707 naqueles em que as onças-pintadas consomem 9. Nos mares, a atividade pesqueira humana atinge 10.423 espécies, número 113 vezes maior do que as que servem de alimento para o tubarão-branco. André Pinassi Antunes, ecólogo do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) que não participou dessa pesquisa, avalia com cautela as comparações do estudo, que, apesar das limitações, ajuda a vislumbrar o impacto que o ser humano pode causar na natureza. “Metanálises que usam informações de grandes bancos de dados refletem mais o conhecimento da ciência sobre os ecossistemas do que a realidade”, afirma Antunes. “Só para dar um exemplo, a onça-pintada caça muito mais espécies do que as nove citadas no trabalho”, explica o pesquisador do Inpa.

Assim como os outros grandes predadores, o ser humano caça ou pesca principalmente para se alimentar. Das 14.663 espécies de vertebrados explorados pelo Homo sapiens, 55% (8.037) viram comida. Das espécies de peixes marinhos analisadas no estudo, 72% são alimento humano; das espécies de animais terrestres, 39%. Esse, no entanto, não é o único uso. Uma fração importante dos vertebrados é explorada para a produção de roupas, medicamentos ou alimentos para outros animais, além da criação como animal de estimação, entre outras finalidades. Segundo os autores do estudo, em geral, os peixes e os mamíferos são utilizados principalmente como alimento, enquanto as aves, os répteis e os anfíbios são, em sua maioria, destinados ao mercado de animais de estimação. “É cada vez mais comum as pessoas adquirirem pets exóticos, como lêmures, iguanas, cobras e aves. Muitas dessas espécies não são criadas em cativeiro e vêm diretamente da natureza”, conta Galetti.

Imagem: Alexandre Affonso / Revista Pesquisa FAPESP

O estudo identificou também variações no número de espécies exploradas e na diversidade de uso segundo a localização geográfica. Nas regiões equatoriais, onde a biodiversidade é maior, como o Sudeste Asiático, mais espécies são caçadas ou pescadas do que em outras partes do mundo. Os níveis de exploração foram desproporcionalmente mais altos nas bacias oceânicas da Índia e do norte da África e da Eurásia do que no oceano Austral, no leste e sul da América do Norte e nas Américas do Sul e Central. De acordo com os resultados, enquanto a predação é voltada para a alimentação nos países asiáticos, o tráfico de animais é o principal motivo de exploração nos países amazônicos. “Tradicionalmente, as pessoas pensam que é a caça ou a pesca que prejudicam as espécies. Mas, quando vão a uma loja e compram um peixinho para colocar no aquário, também podem, sem saber, estar contribuindo para o declínio de espécies silvestres”, alerta o ecólogo Adriano Chiarello, da Universidade de São Paulo, campus de Ribeirão Preto, que não participou do estudo da Communications Biology.

De acordo com o trabalho, o uso humano coloca sob risco de extinção 5.775 espécies de vertebrados, o equivalente a 39% das 14.663 espécies predadas pelo Homo sapiens. “Várias delas desaparecem por causa do tráfico, principalmente as aves canoras”, diz Galetti. “O ser humano está causando uma defaunação global e substituindo a biomassa de animais silvestres pela de animais domésticos, usados para a alimentação ou a criação como pet. Isso tem consequências enormes para o funcionamento dos ecossistemas.”

Papagaio-cinzento criado como animal de estimação. Imagem: Julie R. / Wikimedia Commons

Um estudo conduzido por pesquisadores do Instituto de Ciência Weizmann, em Israel, e publicado no início deste ano na revista PNAS dá uma dimensão dessa mudança na distribuição de biomassa no planeta. Somada, a massa de todos os mamíferos terrestres totaliza 1,08 bilhão de toneladas. Desse valor, no entanto, apenas 5,6% (60 milhões de toneladas) correspondem à massa de animais silvestres (terrestres e aquáticos). Por volta de 58% (630 milhões) são animais domesticados ou mantidos em cativeiro, como o gado bovino, e 36% (390 milhões) equivalem à massa total de seres humanos.

Estudos sobre o uso que o ser humano faz das diferentes espécies, segundo os pesquisadores, são importantes para a elaboração de políticas públicas que visem à conservação e ao manejo sustentável da fauna silvestre. Na avaliação deles, olhar para a maneira como os povos originários lidaram ao longo de milênios com algumas espécies de animais pode ajudar a estabelecer formas de exploração não nocivas. “Temos que reduzir o consumo de carne bovina, aprender a manejar os animais silvestres de forma sustentável e repopular as ‘florestas vazias’, senão vamos acabar causando uma extinção em massa”, afirma Galetti.

Um exemplo bem-sucedido de exploração sustentável é o do pirarucu (Arapaima gigas), o maior peixe de escamas de água doce. Há menos de uma década, ele estava na lista de espécies ameaçadas de extinção. Unindo o conhecimento científico com o das comunidades tradicionais, os pesquisadores, em parceria com órgãos governamentais e os moradores da região, conseguiram recuperar a população do pirarucu em algumas áreas da Amazônia. “Mostrou-se que é possível fazer o manejo sustentável da espécie e gerar renda para as comunidades locais”, afirma Galetti.

Artigos científicos
DARIMONT, C. T. et al. . Communications Biology. 29 jun. 2023.
GREENSPOON, L. et al. . PNAS. 27 fev. 2023.

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