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Qual jornalismo precisamos salvar
"O jornalismo é mesmo necessário? Jornalismo importa? Qual jornalismo?" Leia na coluna de Caio Maia para o Giz Brasil
Imagem: ds_30/Pixabay
Comecei o ano acompanhando duas crises em jornais importantes. As duas em publicações recentemente adquiridas por fundos ou por caras muito ricos: o Los Angeles Times e os tradicionais Diário de Notícias e Jornal de Notícias, de Portugal (ambos do mesmo grupo). No primeiro caso, cortes profundos no pessoal. No segundo, salários atrasados e a ameaça de que os títulos podem simplesmente fechar.
Desde então o debate se alastrou e dominou praticamente qualquer conversa entre jornalistas, principalmente nos países que não são o Brasil. As discussões sobre o tema há algum tempo são numerosas, em alguns casos são até profundas, e quase sempre chegam à conclusão de que o jornalismo como o conhecemos vai morrer.A diferença é que agora elas têm chegado à conclusão de que vai morrer e é agora. As conversas também costumam chegar à conclusão de que “o jornalismo é necessário”. Genericamente, porém.
A primeira pergunta, entretanto, deveria ser, mas nunca é: o jornalismo é mesmo necessário? Jornalismo importa? Qual jornalismo? As investigações profundas? As manchetes dos portais? As colunas do Elio Gaspari? O Jornal Nacional?
Dizer que “jornalismo é importante” é simplificar as coisas, supor que só existe um tipo de jornalismo, e que todos concordamos em que tipo é esse (exatamente para poder dizer que ele é necessário).
Podemos entrar numa longa charla sobre o que é ou não jornalismo e perder longas linhas e preciosos minutos pra não chegar a conclusão nenhuma em podcasts e congressos de entidades de jornalistas frequentados sempre pelos mesmos (poucos) jornalistas.
Podemos, também, dar um ou dois passos pra trás e mudar a primeira pergunta: o que nisso que chamamos “jornalismo” há mais ou menos vários séculos é importante? Fica um pouco etéreo, porém, me parece, mais orientado a entender a treta de fato: o que é necessário? Necessário pra quem? Por que? E, principalmente: se é necessário, por que 99,99% das pessoas está absolutamente cagando para o tema?
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Para mim, o jornalismo é necessário. Para a minha vida. Eu leio jornal, inclusive quando viajo para outros países em que eu entenda a língua. Para mim é necessário saber o que acontece, os contextos em que a vida se passa, mesmo que os casos individuais não tenham ligação direta com a minha vida — que me importa, na prática, se um político dos Açores é acusado de corrupção?
Para mim, importa saber o que acontece no governo dos Açores, no parlamento grego ou no cinema indonésio da mesma maneira que não importa saber o que acontece com 12 (ou 10 ou 15, sei lá eu) seres humanos irrelevantes trancados numa casa.
Mas esse sou eu. Independentemente de eu considerar que a minha escolha nesse caso é “superior” à outra (e eu considero, desculpa aí, mais sobre o meu elitismo abaixo), ela, pelo jeito, não é a escolha de muitas pessoas, que não lêem jornal nem na própria cidade (e assistem BBB e Ilhados com a Sogra).
Meu amigo e colega jornalista Marlos Ápyus postou o seguinte comentário em um post que escrevi sobre isso: “A realidade sempre foi rica em informação. O jornalismo sempre foi uma curadoria dessa realidade, entregava um pacote do que mais relevante você precisava saber.”
E acrescenta, entre outros pontos que eu vou abordar mais pra frente: “Alguém consome jornalismo porque quer estar bem informado, e a internet não informa bem, não tem esse poder de curadoria, porque a internet entrega tudo.”
Este me parece ser o ponto de partida fundamental: a realidade é rica em informação, em teoria, o jornalismo surge porque as pessoas queriam saber o que estava acontecendo ao redor delas, queriam ter um alcance de informação maior do que as conversas do dia a dia podiam entregar.
Tem dois elementos aí: 1) as pessoas querem saber; e 2) a impossibilidade de conseguir saber isso sem ajuda. Então partimos do princípio de que, no início, era isso: gente querendo saber coisas que não tinha como saber de outro jeito. Alguém descobria, escrevia no papel, multiplicava o papel e distribuía.
O que as pessoas queriam saber em 1605, quando foi publicado aquele que é, , considerado o primeiro jornal do mundo? O nome da publicação, em alemão, publicada em Strasbourg, era “Relato de todas as histórias distintas e memoráveis”. O que era distinto e memorável em 1605, porém? E com que alcance? As pessoas queriam saber sobre o que fazia o governo? Se os Estados vizinhos estavam em guerra? Se a safra do trigo ia ser boa? Se o padre estava tendo um caso com a vendedora de flores?
Provavelmente desde a origem o que “importa” era decidido tanto por quem lia como por quem publicava – ou por quem autorizava a publicação. No Reino Unido, por exemplo, demorou mais de 100 anos para os jornais poderem publicar o que se discutia no parlamento.
Da mesma maneira, considerando que no século 17 mais ou menos um quarto da população, no máximo, sabia ler, partimos de algo feito pelas elites e para as elites – e obviamente defendendo o interesse das elites.
(As mesmas elites que em 2024 se sentem especiais porque se interessam pela política dos Açores e não sabem o nome de nenhum participante do BBB. Vai vendo.)
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É importante voltar para isso porque uma grande parte das discussões sobre a importância do jornalismo e como salvá-lo volta a tempos em que os jornais eram o que os americanos chama de “gatekeepers” da informação, eram quem decidia o que importava e deveria ser discutido. Quando a internet começou a se popularizar, ninguém via isto como algo positivo. Por que meia dúzia tinham o poder de decidir o que importava e poderia ou deveria ser publicado?
Imaginava-se que a democratização que a internet traria avançaria no sentido de permitir queo leitor, acima de qualquer coisa, o interesse (do) público determinaria o que tem relevância ou não. E durante um curto período foi assim, pelo menos para a parcela então pequena que tinha acesso à internet.
Tudo muda, porém, quando saímos daquela pequena elite e entra na brincadeira aquele elemento conhecido como “todo mundo”, a imensa parcela da população que nunca teve nenhum tipo de acesso a qualquer conteúdo informativo, e que de uma hora para outra se torna não só receptor da mensagem como também emissor.
A bagunça é geral e não é pequena, porque é muita gente, muito mais gente do que antes estava no jogo, e essas pessoas não participaram daquele combinado que vigia até então. Elas não sacralizam ninguém, não respeitam nenhuma das regras não escritas daquele jogo. E é aí que o modelo vai pro vinagre.
“Espera, cara. Não estou entendendo seu ponto de vista, que me parece bastante elitista. Você está dizendo que tudo dá errado quando mais pessoas começam a consumir informação?” Pois é, o modelo era para uma elite. Não tem como funcionar para todos. Se isso é bom ou ruim tanto faz.
Funcionava para poucos, para muitos não funciona. E o que entra no lugar desse modelo é ainda pior que ele, por muitos motivos, mas não porque inclui mais gente. A reação de algumas pessoas então normalmente aponta da direção do “precisamos dos gatekeepers”, porque bem ou mal mesmo na época em que poucos tinham acesso à produção da informação ainda havia quem defendesse o interesse daqueles que estavam de fora desta elite. O que é, este sim, um pensamento elitista, que supõe que a massa não sabe o que precisa, e que alguém precisa lhe apontar os caminhos.
Nesse sentido, outro amigo, o também jornalista Rodrigo Borges, observou: “Não creio que aquilo que as pessoas ignoram não é necessário. Acredito que muitas pessoas ignoram o jornalismo justamente porque não entendem sua função, porque não acreditam mais nele ou porque acham que respostas de pesquisas feitas no Google são tão sérias quanto uma apuração jornalística.
Penso que falta no jornalismo (ao menos no Brasil) algo que também falta em grande medida à Academia: pés no chão, se comunicar com as pessoas de forma precisa e objetiva e com fácil compreensão. Mas cada vez mais vejo jornalistas fazendo jornalismo pros colegas, pra fazer postagem no Linkedin e ganhar elogios e prêmios.”
Aí você cai de novo em um ponto que vem sendo discutido há tempos já: as pessoas se interessam por assuntos, pouco importa se eles vêm jornalisticamente ou na forma de entretenimento. Elas querem um mix de conhecimento com alienação, em medidas diferentes para cada um.
E, hoje, elas têm mais interesse em saber sobre idiotas trancados em uma casa do que sobre a guerra na Ucrânia ou as decisões do Congresso que impactam as vidas delas. O ponto que eu venho tentando enfatizar, é: importa mais que as pessoas saibam o que se passa no Congresso do que no BBB? Importa para quem?
Claramente no plano individual, não importa. Assim como claramente no plano social importa. Então a gente tem que sair da esfera individual para tentar responder essa pergunta no degrau da sociedade.
Outro amigo jornalista, este famoso, André Forastieri, em um post dele mesmo, não no meu: “Sem jornalismo, com seus muitos defeitos, não há nenhuma possibilidade de liberdade, que dirá de justiça social. A possibilidade de fiscalização independente, de apuração, reportagem, análise e crítica, é a condição mínima para avançarmos. Menos jornalismo é garantia de retrocesso.” Impossível discordar. Ou não é?
Dizer que “o jornalismo é necessário porque os poderosos precisam ser fiscalizados” coloca o jornalismo, e o jornalista, numa prateleira moral alta, e dificulta as discordâncias. Quem pode discordar de que é importante fiscalizar os poderosos, principalmente os que detêm poder político e administram dinheiro público?
O jornalismo que a gente tem hoje, porém, tem feito isso? Que porcentagem do jornalismo que se faz hoje tem apuração e investigação? E influencia as decisões das pessoas que influenciam nas vidas delas mesmas?
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Isto aqui é um longo devaneio. Começa com perguntas que parecem razoavelmente claras pra se embrenhar em uma longa, escura e misteriosa selva — não à toa estou escrevendo este primeiro artigo há seis semanas sem conseguir terminá-lo. O jornalismo como conhecemos está morrendo, e não há nenhuma clareza sobre o que pode vir no lugar.
Discussões com foco são legais, mas me parece claro que esta discussão quando tenta focar acaba apontando para direções que não vão levar a caminhos diferentes dos que estão na mesa hoje. A questão é mais complicada do que isso, e envolve mudar as perguntas, e tirar as amarras das respostas. É permitido e bom focar quando temos uma idéia de onde queremos ou pelo menos podemos chegar.
Entendo que quando discutimos o futuro do jornalismo estamos muito longe disso. O máximo que temos conseguido é observar “o que está dando certo”. E tentar, sempre sem sucesso, replicar, até porque ninguém entendeu porque o que está dando certo está dando certo, nem se vai continuar dando certo.
Eu não sou um teórico do Jornalismo, inclusive não sou teórico de coisa alguma, nem Jornalismo eu estudei. Considero que minha contribuição fundamental para qualquer debate é propor perguntas e ficar de olho nas outras perguntas que estão sendo propostas. E questionar cada pequeno pedaço de cada resposta.
Entendo, também, que este debate não é para os teóricos e nem só para os jornalistas e pessoas que já consideram que o jornalismo importa. Imagino que, no final, podemos todos concordar que a única maneira de salvar o jornalismo é aumentar seu alcance, e não vamos aumentar o alcance falando só entre nós.
Voltando às perguntas lá de cima, entendo que não é difícil entender o que no jornalismo é necessário, pra quem isso é necessário e por que. Sobram perguntas, porém. A primeira, também lá de cima: se é necessário, por que 99,99% das pessoas está absolutamente cagando para o tema? Outra que surge no processo de discussão: o jornalismo que estamos tentando salvar atende a essas necessidades sociais que apontamos acima?
Para o próximo texto, espero que não daqui a seis semanas.