Um dia conseguiremos limpar todo o nosso lixo? Cientistas respondem

O Gizmodo conversou com cinco especialistas para entender o que acontece com o lixo produzido pelos humanos.
Ilustração: Vicky Leta/Gizmodo
Mesmo após a nossa morte, uma parte cada vez maior do nosso lixo continua no planeta. Por mais que os ossos do seu bisavô se tornaram matéria orgânica no solo, o mesmo não pode ser dito da embalagem que ele descartou há 80 anos. Nossos aterros sanitários são museus mal organizados e crescem a cada segundo. Alguns, é claro, já atingiram a capacidade máxima e agora hospedam apenas lixo antigo. Pensando nisso, seria essencial encontrarmos uma maneira de parar de produzir resíduos em vez de gerá-los de forma exponencial.

Porém, a questão é: para onde vai todo esse lixo novo? Suponho que poderíamos estabelecer algum tipo de sistema de sorte em que, a cada ano, uma pequena cidade norte-americana seja deslocada, demolida e convertida em um depósito de lixo. Mas, do jeito que as coisas estão indo, mesmo isso pode não ser suficiente. Devemos tentar, então, nos livrar de todo o lixo velho para abrir espaço para lixo novo? Poderíamos, mesmo se quiséssemos? Conversamos com cinco especialistas para descobrir.

Jan A. Zalasiewicz

Professor Emérito de Paleobiologia na Universidade de Leicester, e autor de “A Terra Depois de Nós: Que Legado os Humanos Deixarão nas Rochas?”, entre outros livros

Nossos aterros sanitários são enormes e estão crescendo rapidamente. Alguns podem se tornar recursos no futuro, se contiverem metais ou outros materiais úteis suficientes. Mas, é improvável que limpemos mais do que uma pequena fração deles, seja para lucro ou para o bem do planeta. Quanto ao resto, a natureza irá resolver. Esse tipo de limpeza pode produzir alguns fósseis em um futuro distante, mas antes disso, alguns dos resultados não serão bons. Existem dois destinos finais para um aterro sanitário — que é uma massa de lixo que pode ter quilômetros quadrados de tamanho e várias dezenas de metros de espessura. Em primeiro lugar, ele pode simplesmente ser enterrado e permanecer lá por muitos milhões de anos. Esse tipo de processo pode acontecer em uma planície costeira, como a do Mississippi, por exemplo. O local ficará cada vez mais soterrado por massas de sedimentos, chegando talvez a vários quilômetros abaixo do solo, sendo comprimido, aquecido e talvez amassado pelos movimentos subterrâneos da crosta terrestre. O conteúdo, por sua vez, será transformado em “tecnofósseis” extraordinários que podem se tornar um objeto de admiração por algum paleontólogo do futuro. Esse novo tipo de rocha será bizarro, mas provavelmente, a essa altura, bastante inofensivo: as toxinas terão se deteriorado e os plásticos se transformarão em fragmentos semelhantes ao carvão.

O outro tipo de “limpeza” natural é mais imediata — e mais prejudicial. Os aterros não enterrados geologicamente serão, mais cedo ou mais tarde, erodidos pela ação do vento, especialmente aqueles próximos à costa, que são atingidos pelas ondas e marés à medida que o nível do mar sobe. O lixo deles é desenterrado e então carregado por correntes, geralmente para litorais distantes e oceanos profundos, colocando em perigo os humanos e outros organismos vivos. Esse processo já está em andamento em vários lugares do mundo.

Judith Enck

Presidente da Beyond Plastics e ex-administradora regional da EPA

Os americanos geram uma quantidade enorme de resíduos sólidos, e esses resíduos têm impactos muito significativos na justiça ambiental e nas mudanças climáticas. O problema é que, nos EUA, nossos padrões de consumo não são sustentáveis. O país tem 4% da população mundial; enquanto isso, ele usa 17% da energia mundial, engole 24% dos recursos naturais do mundo e – não surpreendentemente – cria 12% dos resíduos sólidos da Terra.

O que realmente temos que fazer é reduzir a produção de embalagens, que representam quase metade desses resíduos urbanos. As de plástico, em particular, são um problema, porque nunca se biodegradam em aterros sanitários e, se forem queimadas em um incinerador de lixo, geram poluentes atmosféricos, incluindo dioxinas. Apesar de tudo isso, a produção de plástico está crescendo em ritmo acelerado. Uma abordagem de engenharia para esse problema é chamada de mineração em aterro, que envolve ir para aterros antigos e tentar retirar o material. Não sou particularmente otimista com isso pois acho que vale a pena retirar alguns metais e vidro, mas o problema é que, se você quebra as tampas de aterros revestidos e tampados, pode acabar liberando grandes quantidades de gás metano. Você também não quer desenterrar papelão e papel que está em processo de biodegradação. E isso sem falar no fato de que há muitos resíduos perigosos nos aterros municipais. A mineração em aterros sanitários era a coisa mais recente e interessante cerca de 15 anos atrás, mas neste momento não há muito disso acontecendo, o que é bom. Ao invés desse procedimento, eu defenderia fortemente a exigência de que as empresas projetassem suas embalagens para torná-las  reutilizáveis. Em situações em que isso não é possível, a reciclagem é a segunda opção. Infelizmente, a reciclagem de plástico foi um fracasso: atingimos uma taxa de apenas 8,5% nos EUA. Também não devemos esquecer da compostagem. O que é empolgante sobre a compostagem é que cerca de 40% do fluxo de resíduos americanos são resíduos de alimentos e resíduos de quintal. A maneira de lidar com todo esse desperdício é, primeiro, seguir os conselhos de seus pais e terminar o que está em seu prato; ou então doar o que você não come para abrigos de sem-teto e agências de serviço social; e enviar o restante para operações de compostagem. Se você mantiver o universo desse fluxo de resíduos muito limitado a apenas resíduos de jardim e resíduos de alimentos, sua operação de compostagem funcionará perfeitamente. A maioria das comunidades nos EUA não facilita a compostagem de resíduos de quintal e resíduos de alimentos, que é precisamente o material que você precisa manter fora dos aterros, porque quando se biodegrada e se decompõe lá, forma gás metano — um catalisador para o efeito estufa.

David C. Wilson

Professor em Gestão de Recursos e Resíduos no Imperial College London, autor principal do Programa Global de Gestão de Resíduos das Nações Unidas, e coautor de Gestão de Resíduos Sólidos nas Cidades do Mundo, do UN-Habitat

O planeta está realmente enfrentando uma crise de resíduos sólidos urbanos. Cerca de 40% da população mundial não tem seu lixo coletado e é obrigada a administrá-lo por meio de despejo e queima a céu aberto. Mesmo quando o lixo é coletado, grande parte vai para o descarte descontrolado. Assim, a prioridade deve ser o controle do lixo, estendendo a coleta a todos e substituindo o despejo e a queima por recuperação e descarte controlados. Isso não só trará enormes benefícios para a saúde pública e o meio ambiente local, mas também reduzirá pela metade as estimadas 10 milhões de toneladas de plásticos que entram nos oceanos a cada ano e reduzirá as emissões globais de gases de efeito estufa em cerca de 5%. Uma segunda prioridade é ir além do descarte controlado para opções de manejo mais sustentáveis. Isso começa com a prevenção de resíduos, por exemplo, projetar produtos e embalagens para uma vida mais longa. Reutilizar, reciclar e mudar nosso comportamento também seria algo positivo. Separar os resíduos para maximizar a distinção entre material seco e reciclagem orgânica é uma atitude essencial nesse momento. Muitos países em desenvolvimento já têm um setor de reciclagem informal próspero, que pode ser aproveitado para reduzir o custo de controlar os resíduos. Então, sim, com um enorme esforço global apoiado por todos os países e organizações comerciais, podemos esperar o tempo em que limparemos o lixo do planeta. Mas até “fecharmos a torneira”e começarmos a gerenciar adequadamente o estimado um bilhão de toneladas de lixo (cerca de 50% do total), pareceria um pouco fútil concentrar recursos na tentativa de limpar todos os aterros sanitários antigos do planeta.

Jack Caravanos

Professor de Ciências de Saúde Pública Ambiental na Universidade de Nova York, que estuda chumbo e resíduos tóxicos para projetar soluções seguras e baseadas em evidências para a poluição ambiental

Eu diria que limpar os aterros do passado é muito arriscado, provavelmente é melhor deixá-los lá. Uma vez que o lixo está no solo, escavá-lo e reorganizá-lo é muito desafiador e apresenta um sério desafio para a saúde pública, que pode ser desastroso devido ao potencial de exposição. Você tem coisas que estão no solo há anos — algumas delas estão podres, outras estão úmidas, outras têm mofo. E existem outras complicações. Veja Nova York: os aeroportos La Guardia e Kennedy são construídos em aterros, então desenterrá-los é impossível. Acho que a chave, então, é parar de colocar coisas em aterros que poderíamos reciclar completamente. Ainda estamos aterrando muitos plásticos que não deveriam estar lá. Dito isso, as coisas melhoraram. Em geral, ao longo dos anos, temos enviado cada vez menos para aterros, porque nossa reciclagem é muito melhor. O que podemos fazer em relação às caixas de cereal ou pizza, por exemplo, é tentar cortá-las e compostá-las. Porém, não se pode fazer isso com a maior parte do que está em uma lata de lixo comum. Portanto, os antigos aterros sanitários na Pensilvânia, Nova York, Illinois, etc. provavelmente permanecerão lá e, eventualmente, com sorte, serão transformados em belos parques ou outros espaços verdes. Do jeito que as coisas estão, eles não estão fazendo mal a ninguém, e fico preocupado que, ao abri-los e esvaziá-los, causaríamos mais danos do que benefícios. Também vale a pena mencionar que, em alguns países pobres, os aterros são importantes locais de emprego. Há uma hierarquia organizada: alguns coletam vidro, alguns coletam alumínio, alguns coletam metais. Existe um enorme aterro histórico no Senegal, Mbeubeuss, por exemplo, que mantém dezenas de milhares de catadores. Ao mesmo tempo, alguns desses aterros ficam tão grandes que desabam, resultando em fatalidades. Portanto, temos um impasse: você não quer fechar empregos para pessoas necessitadas, que, em última análise, estão fazendo algo de bom para o planeta por meio da reciclagem, mas os riscos de colapsos e exposições a produtos químicos são muito sérios.

Josh Lepawsky

Professor de Geografia na Universidade Memorial de Newfoundland and Labrador, cuja pesquisa investiga onde e como os descartes contemporâneos são feitos, para onde viajam e onde seus efeitos se acumulam, para quem e em que condições

Se “limpar” significa algo como “desaparecer” ou “tornou-se benigno”, então não, isso é uma fantasia. Com tempo suficiente, todos os aterros sanitários vazam e derramam. Podemos mover o lixo de um lugar para outro, mas não podemos fazer com que tudo desapareça, porque não existe um ‘afastamento’ definitivo. Exceto pelos aterros que foram fechados para uso futuro — como Fresh Kills na cidade de Nova York — os aterros de hoje não são volumes fixos de lixo depositado. Eles estão crescendo. Para limpá-los, seria preciso imaginar um processo que funcionaria mais rápido do que a taxa de deposição em aterros em operação e em aterros históricos agora fechados. Isso é uma contradição na prática em uma economia baseada no crescimento. A questão da limpeza não envolve apenas a tonelagem. É comum pensar em lixo aparentemente exótico, como o lixo nuclear, tendo vida longa, mas muitos materiais que normalmente vão para aterros sanitários, como certos plásticos, irão persistir por tanto ou mais tempo do que os materiais radioativos. Além disso, muitas coisas que chegam aos aterros sanitários hoje são amálgamas heterogêneas de materiais que, a partir de agora, não têm nenhuma maneira conhecida de tratá-las além da deposição. Literalmente, ainda não existe um jeito de reutilizar ou reciclar alguns amálgamas de plásticos, metais ou compostos químicos comumente encontrados em aterros. Talvez haja um futuro em que alguma forma de tecnologia seja inventada que possa minerar e reprojetar todos os materiais atualmente depositados nesses locais. Mesmo assim, dados os entendimentos atuais da física, isso exigiria entradas de materiais e energia e essas teriam que vir de algum lugar. Mesmo que viessem dos próprios aterros de alguma forma, seria preciso imaginá-los sendo convertidos em substâncias benéficas, em vez de prejudiciais, no processo. Portanto, em um sentido muito real, a ideia de ‘limpeza’ é ficção científica. Nada disso quer dizer que, como limpar é impossível, as pessoas não deveriam fazer tudo o que puder para mitigar o lixo. Mas uma limpeza genuína significaria, em primeiro lugar, lidar sistematicamente na forma como o lixo é gerado.

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