Perturbações cerebrais na infância podem levar a transtornos psiquiátricos na vida adulta
Texto: José Tadeu Arantes |
Os primeiros anos de vida são cruciais para o desenvolvimento adequado e a maturação do cérebro. Perturbações cerebrais nessa fase, como lesões, infecções, estresse ou desnutrição, podem afetar profundamente a função cerebral e o comportamento por toda a vida. Crises convulsivas são as ocorrências neurológicas mais comuns nessa idade e constituem fatores de risco significativos para a incidência de distúrbios do neurodesenvolvimento, como autismo, transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) e deficiência intelectual, bem como de esquizofrenia e epilepsia.Liderado pelo pesquisador , sob supervisão do professor , o estudo contou com a colaboração de cientistas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E foi no periódico eLife.
“Os efeitos das crises na infância não estão associados à morte de neurônios, mas sim a disfunções moleculares, celulares e de redes neurais. Descobrimos que ocorre um aumento persistente de inflamação no cérebro, associada a alterações comportamentais relevantes para autismo e esquizofrenia”, diz Ruggiero.Outra descoberta bastante intrigante foi a de que, em indivíduos que sofreram crises na infância, a atividade cerebral em estado ativo de vigília apresenta uma semelhança acima da esperada com a atividade cerebral durante o sono REM [sigla decorrente da expressão em língua inglesa rapid eye movement, ou movimento rápido dos olhos]. “Como o sono REM é o estágio em que ocorrem os sonhos mais vívidos, essa semelhança poderia explicar processamentos sensoriais atípicos, que ocorrem especialmente na esquizofrenia”, afirma , coautor do artigo. Ele e colaboradores associam essa condição a um excesso de dopamina.
“Na clínica, as epilepsias apresentam uma alta taxa de comorbidades psiquiátricas, ou seja, de transtornos mentais que ocorrem junto com a doença neurológica. Existe uma forte associação com autismo, deficiência intelectual e transtorno de déficit de atenção, bem como com condições psiquiátricas que se manifestam na idade adulta, como a esquizofrenia e outros transtornos psicóticos. Estima-se que 30% dos indivíduos com autismo também apresentem epilepsia. Esta interseção complexa entre neurologia e psiquiatria é um dos principais focos de nossas pesquisas nos últimos anos”, comenta Pereira Leite, coordenador do estudo em pauta e pesquisador responsável pelo Projeto Temático FAPESP “”.
Diante da descoberta de que as convulsões na infância não causavam morte de neurônios, os pesquisadores se perguntaram onde ficariam localizadas as marcas cerebrais por trás dessas alterações comportamentais. “Em , verificamos que muitos dos efeitos comportamentais das crises na infância correspondem a funções cognitivas e comportamentais que dependem do hipocampo [região do cérebro crucial para a formação da memória e integração sensório-motora], do córtex pré-frontal [responsável pelo planejamento, atenção e controle emocional], bem como da comunicação entre elas. Por isso, estabelecemos como hipótese que essas regiões poderiam ser boas candidatas para conter as disfunções neurais relacionadas às alterações comportamentais oriundas das perturbações cerebrais na infância”, responde Ruggiero.
Um dos achados mais marcantes do estudo foi a presença de inflamação no cérebro dos animais que sofreram crises na infância. O processo de neuroinflamação é natural e fundamental para o cérebro no combate a infecções e na recuperação de lesões. No sistema nervoso, os principais responsáveis por esse papel são as células da glia, como os astrócitos, que, diante de injúrias cerebrais, aumentam sua atividade, expandindo-se, ramificando-se, multiplicando-se e tornando-se prontas para lidar com quaisquer danos cerebrais. Assim, uma maneira de investigar a neuroinflamação no cérebro é pela marcação de uma proteína chamada GFAP, que está presente no esqueleto dos astrócitos. Seus níveis são bons indicadores da ativação destas células.“Embora não ocorra lesão de fato de neurônios, as convulsões na infância resultam em um aumento do processo neuroinflamatório. Observamos esse aumento em todas as regiões cerebrais examinadas. Além disso, os níveis de inflamação estavam significativamente correlacionados com as alterações comportamentais, especialmente àquelas sensório-motoras, mais relevantes para o autismo e a esquizofrenia”, relata , outro dos autores do estudo.
Não é exatamente novidade que o TEA e a esquizofrenia estejam associados à neuroinflamação. Em 2005, uma análise post-mortem de cérebros de indivíduos com TEA apresentou vários indícios de neuroinflamação. No caso da esquizofrenia, a relação com a inflamação é ainda mais evidente. Em 2017, foi relatado o caso de um paciente com esquizofrenia que apresentou remissão completa dos sintomas após um transplante de medula óssea – processo que substitui completamente o sistema imunológico original do paciente. Também existem relatos de casos inversos, nos quais pacientes sem esquizofrenia desenvolveram o transtorno após transplante de medula óssea de um indivíduo que sofria de alucinações e delírios, como relatado em 2015.
Além desses transtornos, casos de doenças autoimunes cerebrais, nas quais o sistema imunológico ataca o próprio cérebro, levando à sua inflamação, comumente apresentam sintomas típicos de confusão mental, alucinações e delírios, muitas vezes sendo diagnosticados como transtornos psicóticos, mas não respondendo aos tratamentos convencionais. O presente estudo liga esses pontos, mostrando como as convulsões na infância representam um importante gatilho para uma neuroinflamação desregulada que pode persistir até a vida adulta. Assim, intervenções para interromper esse processo poderiam possivelmente aliviar ou prevenir o desenvolvimento de alterações comportamentais a longo prazo. “Uma perspectiva otimista dos achados é que as alterações comportamentais não estão necessariamente ligadas à morte neuronal, que é irreversível, mas sim a disfunções neurais potencialmente reversíveis com tratamento. Isso sugere que, mesmo após perturbações cerebrais na infância, há oportunidades de intervenção que podem melhorar o funcionamento cerebral e comportamental ao longo da vida. Porém, quanto mais precoce a intervenção, maior a garantia de se promover um desenvolvimento saudável e de se prevenir complicações no futuro”, conclui Ruggiero.A pesquisa também recebeu apoio da FAPESP por meio de bolsas de pós-doutorado concedidas a três integrantes da equipe de pesquisadores: o próprio , e .
O artigo Dysfunctional hippocampal-prefrontal network underlies a multidimensional neuropsychiatric phenotype following early-life seizure pode ser encontrado em: .