Os desafios para regulamentar o uso da inteligência artificial
Texto: Sarah Schmidt/Revista Pesquisa Fapesp
Nos últimos meses, representantes do governo dos 27 países da União Europeia, do Canadá e do Brasil trabalharam intensamente para elaborar diretrizes para o uso seguro de programas e aplicativos que utilizam inteligência artificial (IA). O Parlamento europeu aprovou em junho a versão final de um projeto de lei, o AI Act. Caso seja aprovado pelos países-membros, talvez ainda neste ano, pode se tornar a primeira legislação sobre IA do mundo. No Brasil, ao menos quatro projetos de lei (PL) que procuram criar regras sobre o desenvolvimento, a implementação e o uso de sistemas de IA tramitam no Congresso Nacional e devem ser discutidos ainda em 2023.“Permanecer no território da incerteza de regulamentação pode ser prejudicial para os cidadãos”, afirma a advogada Cristina Godoy, da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP-USP). Ela é autora de um artigo publicado em outubro de 2022 na Revista USP sobre os desafios da regulação da IA no país. No final de setembro, ela deve apresentar em um congresso em Belo Horizonte os resultados iniciais de uma pesquisa sobre o uso de reconhecimento facial, um tipo de IA, para a concessão de empréstimos bancários.
No estudo, realizado no âmbito do Centro de Inteligência Artificial (C4AI) da USP, apoiado por IBM e FAPESP, 90% dos autores de 2,3 mil processos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) não reconhecem os empréstimos aprovados por meio da biometria facial nos aplicativos dos bancos. “As pessoas alegam que não assinaram nenhum documento e não sabiam que estavam contratando o serviço”, relata a pesquisadora. Os dados integram o Observatório Brasileiro de Inteligência Artificial, portal desenvolvido com o Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.Br), que deve ser lançado ainda neste ano.Um exemplo: pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) analisaram dados da Rede Observatório da Segurança, que monitorara dados de segurança pública em oito estados. Eles verificaram que 90% das 151 pessoas detidas no país em 2019 com base em câmeras de reconhecimento facial eram negras, como detalhado em um estudo publicado em julho de 2020 na revista Novos Olhares.
“Ao serem treinados com bases de dados do passado e do presente, os programas de inteligência artificial podem muitas vezes reproduzir ou ampliar padrões de discriminação”, avalia o advogado Bruno Ricardo Bioni, diretor da Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa e membro do Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade, órgão consultivo da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD). Bioni integrou a comissão de especialistas em direito digital e civil convocada pelo Senado Federal em março de 2022 para analisar os projetos sobre regulamentação de IA. Um deles, o PL 21/20, foi bastante criticado por ser muito genérico. Após nove meses de seminários e audiências públicas, a equipe de juristas apresentou um relatório de 900 páginas com conceitos e sugestões de princípios a serem seguidos. Cerca de 20 páginas serviram de base para outra proposta de PL, o 2338/23, apresentado em maio pelo senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado. Em julho, o senador Jorge Kajuru (PSB-GO) solicitou ao Senado que os projetos de lei similares, como o 5691/19, o 21/20 e o 2338/23, tramitem juntos. “Agora, espera-se que neste segundo semestre o Parlamento possa avaliar esses projetos em conjunto, usando o 2338/23 como base, para aprovar uma regulamentação para o país”, comenta Bioni.Classificação de riscos
Em um artigo publicado em fevereiro na revista científica IEEE Internet Computing, ele, com os coautores, propõe um modelo de governança, que chama de corregulação. O governo estabeleceria diretrizes e políticas públicas, cabendo às empresas criar e seguir seu próprios mecanismos internos de governança. “As tecnologias de inteligência artificial mudam muito rapidamente e é difícil dar conta de todas essas transformações com apenas uma lei”, pondera.
Espaços para a inovação
Fabio Gagliardi Cozman, coordenador do Centro de Inteligência Artificial da USP, alerta para o risco de as regras a serem criadas inibirem o empreendedorismo: “Uma regulamentação muito restritiva poderia impedir o desenvolvimento local da inovação e, no fim, as tecnologias teriam de ser importadas”, observa. Também preocupado com o impacto da regulamentação sobre a indústria nacional, o cientista político Fernando Filgueiras, da Universidade Federal de Goiás (UFG), defende: “A legislação deveria estar associada a mecanismos de incentivo à pesquisa e à indústria”. Para Filgueiras, sem investimentos na pesquisa e indústria nacional, grandes corporações internacionais podem estar mais estruturadas para lidar com as possíveis sanções, enquanto as pequenas e médias empresas nacionais, com menos recursos, podem ficar para trás.A “Estratégia brasileira de inteligência artificial”, que trata de questões éticas para o governo avançar na área, publicada em agosto de 2021 pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), poderia, a seu ver, ser um documento complementar às regras a serem criadas. Mas, como ele observou em fevereiro de 2023 na revista Discover Artificial Intelligence, o documento do governo é genérico e não deixa claro como irá se movimentar nessa área e como pretende apoiar as pesquisas em universidades e empresas. Procurado, o MCTI não respondeu aos pedidos de esclarecimentos solicitados por Pesquisa FAPESP.
Cristina Godoy, da USP de Ribeirão Preto, observa que a proposta da União Europeia prevê uma avaliação do impacto da IA em pequenas e médias empresas, caso as medidas regulatórias fossem aprovadas, algo que não consta no documento brasileiro. “Conhecendo essa realidade, os governos podem calcular o quanto precisam investir para apoiar a inovação”, afirma.O AI Act prevê os chamados sandbox ou ambientes de teste de regulamentação, nos quais startups poderiam pôr à prova suas criações sem sofrer sanções ou multas. No Brasil, o PL n° 2338/23, do Senado, prevê ambientes regulatórios experimentais similares, igualmente fiscalizados por autoridade competente a ser definida. “Esses espaços dificilmente funcionarão de modo satisfatório sem uma visão estratégica do orçamento e das áreas prioritárias a serem apoiadas”, alerta. Segundo ela, uma previsão de investimento em quais áreas de IA são mais relevantes pode tornar esse processo mais eficiente para as empresas se organizarem para participar da captação de recursos e, consequentemente, testarem depois seus produtos nesses ambientes sandbox. Ela apontou essa lacuna da estratégia nacional em seu artigo da Revista USP.
Outro desafio da regulamentação será a fiscalização das instituições públicas e privadas. Os europeus devem criar um órgão específico com essa finalidade. No Brasil, o projeto de lei prevê a constituição de uma autoridade regulatória que, a princípio, deveria dar conta de todas as áreas em que a IA possa ser aplicada. Ela deverá ser indicada pelo Poder Executivo. Especialistas ouvidos para esta reportagem veem uma movimentação da ANPD, que recentemente se tornou uma autarquia, para absorver essa função. Godoy considera esse caminho arriscado. A permeabilidade das aplicações de IA, que estão em setores distintos da economia, tornaria a tarefa complicada se ela se concentrasse em apenas um órgão. “É difícil que ela reúna todas as expertises necessárias, passando da saúde à educação”, diz. Especialista nos impactos éticos e sociais da IA, Dora Kaufman, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), observa que a constituição de uma agência nacional de regulamentação talvez seja inviável e sugere que agências setoriais poderiam assumir essa missão – o Banco Central (Bacen) poderia cuidar do setor bancário e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) da saúde. “Nos Estados Unidos não existe nem parece iminente uma regulamentação federal”, ela comenta. “A autoridade e a responsabilidade pela regulamentação e governança de IA são distribuídas entre as agências federais.” Os dois documentos que regem essa área – o “Blueprint for an AI bill of rights”, da Casa Branca, e “NIST risk management framework”, do Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia – são de orientação voluntária, sem força de lei. O cientista da computação André Carlos Ponce de Leon Carvalho, do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP, em São Carlos, levanta outra dúvida: “Será que uma regulação nacional dará conta do problema ou os países precisarão de acordos internacionais, como foi feito com a energia nuclear?”.Os especialistas alertam que qualquer regulamentação precisará de um tempo de maturação para que os parlamentares conheçam melhor o assunto e outros setores da sociedade passem a participar dos debates. “A regulamentação prematura pode restringir a inovação e não proteger a sociedade”, ressalta Kaufman. “O processo é tão importante quanto o resultado final.” Como exemplos a serem lembrados, ela cita o Marco Civil da Internet, aprovado em abril de 2014 após discussões abertas que começaram em 2009, e o processo europeu de regulamentação da IA, cuja consulta pública começou em abril de 2021.
Os níveis de risco da IA na Europa e no Brasil
COMUNIDADE EUROPEIA
Artificial Intelligence Act (IA Act)
- Inaceitável (proibido)
– Algoritmos que façam pontuação social ou classifiquem os cidadãos com base em comportamento ou policiamento preditivo - Risco elevado: Serão avaliados antes e depois da comercialização
– Sistemas de gestão de infraestrutura (transportes, educação) e de controle de fronteiras ou assistência jurídica - Risco limitado: Devem cumprir medidas mínimas de transparência
– Programas que produzem deepfake e chatbots - Risco mínimo: Sem obrigações legais adicionais além da legislação existente
BRASIL
Projeto de Lei nº 2338/2023
- Proibido
– Programas de classificação social ou capazes de manipular o comportamento de populações vulneráveis - Alto risco: Devem ser avaliados e monitorados antes e durante seu uso
– Programas de classificação automática de estudantes, candidatos a emprego, pedidos de crédito ou benefícios da previdência social, diagnósticos médicos, risco de crimes e comportamento criminal, e veículos autônomos
As propostas em análise no país
O projeto de regulamentação não menciona as IA generativas de uso geral, já que o trabalho dos juristas foi feito antes da liberação do ChatGPT, nem as usadas para criar deepfakes. Por isso, é provável que ainda passe por alterações em sua tramitação.
As aplicações que geram conteúdos sintéticos hiper-realistas, como as deepfakes de vídeo ou de áudio, são uma preocupação crescente devido à capacidade de gerar desinformação com conteúdos falsos, com potencial para prejudicar os processos democráticos nas eleições.
Um comercial recente de uma fabricante de veículos incluiu uma imagem gerada por deepfake da cantora Elis Regina, morta em 1982, cantando com a filha Maria Rita. Em julho, o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) abriu um processo para investigar o direito de uso de imagem de Elis. A polêmica se estendeu ao Congresso Nacional: ao menos dois projetos de lei (3592/23, no Senado, e o 3614/23, na Câmara dos Deputados) propõem diretrizes para o uso de imagens e áudios de pessoas que já morreram por meio de sistemas de IA.
O advogado Antonio Carlos Morato, da Faculdade de Direito da USP, que pesquisa direito autoral e inteligência artificial, não vê a necessidade de leis específicas para esse tipo de uso: “Sem dúvida, é possível evitar que utilizações não autorizadas ocorram com o que já temos na Constituição Federal, Código Civil e Lei de Direitos Autorais. O Projeto de Lei n° 3614/23, por exemplo, pretende apenas detalhar o que já existe no texto atual do Código Civil”. Para ele, a autorização dos filhos para o comercial da cantora foi válida, uma vez que os direitos da personalidade (que incluem a imagem e a voz) já são protegidos pela Constituição Federal e pelo Código Civil, existindo a possibilidade de sua defesa por parentes até o quarto grau após a morte.Projetos
1. Centro de Inteligência Artificial (); Modalidade Centros de Pesquisa em Engenharia (CPE); Pesquisador responsável Fabio Gagliardi Cozman (USP); Investimento R$ 7.102.736,09.
2. Regulação e financiamento da inteligência artificial no Brasil () ; Modalidade Bolsas no Brasil; Pesquisadora responsável Cristina Godoy Bernardo de Oliveira (USP); Investimento R$ 44.287,20.
3. Centro de Inovação em Inteligência Artificial para a Saúde (CIIA- Saúde) (); Modalidade Centros de Pesquisa em Engenharia (CPE); Pesquisador responsável Virgílio Augusto Fernandes Almeida (UFMG); Investimento R$ 1.683.839,04.
Artigos científicos
ALMEIDA, V. et al. . IEEE Internet Computing. v. 27, n. 1, p. 70-4. jan. 2023.
BRANDÃO, R. et al. . Bracis 2022. Lecture notes in computer science. Intelligent Systems. v. 13653. nov. 2022.
FILGUEIRAS, F. e JUNQUILHO, T. A. . Discover Artificial Intelligence. n. 3, v. 7. fev. 2023.
GODOY, C. B. O. Revista USP. n. 135. out. 2022.
MAGNO, M. E. da S. P. e BEZERRA, J. S. . Novos Olhares. v. 9, n. 2. p. 45-52. jul. 2020.
VIEIRA, L. M. . 2019 Brazilian Technology Symposium.