Texto: Washington Castilhos/
Quem nunca se pegou buscando algo mais para comer, em geral gostoso, como uma segunda fatia de pudim ou outra bola de sorvete, depois de uma refeição farta? O responsável por esse comportamento, aparentemente impulsivo e associado à ativação dos circuitos cerebrais ligados à sensação de prazer, é, ao menos em alguns casos, um pequeno grupo de células do tronco encefálico, uma estrutura do sistema nervoso central muito primitiva, localizada perto da base do cérebro e encontrada nos vertebrados há centenas de milhões de anos. A função peculiar desses neurônios, que despertam a vontade de comer mesmo sem fome, foi descrita em março em um artigo publicado na revista Nature Communications pela equipe do neurocientista brasileiro Avishek Adhikari, pesquisador da Universidade da Califórnia em Los Angeles (Ucla), nos Estados Unidos.
Descendente de indianos, Adhikari se interessou por neurociência ainda na graduação em química na Universidade de São Paulo (USP). Durante o mestrado e o doutorado, feitos nos Estados Unidos, especializou-se em caracterizar como diferentes áreas do cérebro atuam para disparar as sensações de medo e ansiedade. O seu grupo de pesquisa na Ucla dedica-se a estudar uma região do sistema nervoso central chamada substância cinzenta periaquedutal (PAG). Localizada no tronco encefálico, a PAG é uma espécie de alarme potente. Quando ativada por completo, essa região dispara uma resposta intensa de pânico.
Em experimentos com camundongos, o neurocientista brasileiro Fernando Reis, pesquisador no laboratório de Adhikari, tentava descobrir a função de um punhado específico de células da PAG – os neurônios VGAT, que liberam o neurotransmissor ácido gama-aminobutírico – quando teve uma surpresa. Em vez de alterar a resposta de medo como as demais células da PAG, os neurônios VGAT levavam os roedores a iniciar uma busca frenética por comida – em especial, por alimentos calóricos. “Não esperávamos esse efeito”, conta Adhikari.
Para avaliar a função dessas células, os pesquisadores usaram uma técnica chamada optogenética. Eles injetaram na PAG dos roedores um vírus contendo o gene para a produção de uma proteína sensível à luz e, depois, com laser de cores diferentes, estimulavam ou inibiam a ação dos neurônios VGAT enquanto os animais eram expostos a diferentes objetos ou tipos de alimentos.
Testes iniciais indicaram que, naturalmente, os neurônios VGAT se tornavam mais ativos quando os camundongos buscavam alimentos do que depois de começar a consumi-los, um sinal de que poderiam estar envolvidos na vontade de comer. Reis, então, realizou uma bateria de experimentos nos quais colocou os roedores em uma caixa ora com um objeto novo (uma bola de pingue-pongue ou um bloco de madeira), ora com um grilo ou uma noz.
Quando os neurônios VGAT eram acionados pela luz, o animal rapidamente passava a explorar o ambiente e o objeto que desconhecia – por exemplo, mordiscava a bolinha ou o bloco. Na caixa com o grilo, uma presa habitual dos roedores, o camundongo, mesmo estando bem alimentado, rapidamente capturava o inseto e o consumia. Diante da noz, um alimento mais calórico do que o grilo, o roedor corria para comê-la. Os animais também ingeriam mais desses alimentos e de outros de que gostam, como chocolate e queijo, mas menos verduras e legumes.
Nos testes em que era exposto simultaneamente à bolinha e à noz, sem poder alcançar nenhuma delas, o camundongo passava a maior parte do tempo no canto da caixa próximo à castanha, um indicativo de que a ativação desses neurônios motivava a busca de comida. Com os neurônios VGAT ativados, os animais, sempre bem alimentados, suportavam caminhar sobre um piso que lhes dava leves descargas elétricas nas patas – que provocavam um leve desconforto, sem machucar nem causar dor – para chegar até a comida. Em geral, camundongos sem fome evitariam esse estímulo aversivo.
Observando os animais, Reis e colaboradores encontraram ainda indícios de que a ativação dos neurônios VGAT estava associada a um estado agradável e prazeroso. “Se a ativação dessas células era feita toda vez que o animal estava no lado direito da caixa, depois de algumas repetições, ele passava a permanecer mais tempo naquele local. Se a ativação ocorria depois de apertar um botão, o roedor passava a pressioná-lo mais vezes”, conta Adhikari. “Se essas células disparassem sensações desagradáveis, como a fome, eles não repetiriam o comportamento”.
Os testes mostraram ainda que a atividade desses neurônios é necessária para estimular a busca por comida. Quando os pesquisadores usaram um laser verde para inibir os neurônios VGAT, os roedores pararam de procurar alimento, mesmo que estivessem com fome.
Como a substância cinzenta periaquedutal e os neurônios VGAT também existem em humanos, os pesquisadores supõem que eles possam estar ligados a transtornos alimentares. “Os resultados sugerem que, se estiver menos ativado que o normal, esse circuito poderia levar à anorexia. Já a ativação excessiva poderia provocar compulsão alimentar”, conta Reis. Caso isso de fato ocorra nos seres humanos, argumenta o pesquisador, talvez seja possível encontrar uma forma de modificar o funcionamento desses neurônios e auxiliar no tratamento desses transtornos alimentares.
“Eventualmente, a ativação desse circuito poderia ser usada para compensar, por exemplo, a perda de apetite decorrente de tratamentos do câncer”, relata o neurocientista Alexandre Kihara, da Universidade Federal do ABC e coautor do estudo.
Para o imunologista Licio Velloso, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que não participou da pesquisa, o mérito do trabalho foi identificar como esse circuito influencia a forma de buscar comida e a escolha do alimento procurado. Para ele, por ora, os achados do modelo animal não devem ser extrapolados para os seres humanos. “Nas pessoas, essas células podem fazer conexões com outros circuitos envolvidos na alimentação”, explica. “Além disso, o ácido gama-aminobutírico é um neurotransmissor importante em quase todas as regiões do sistema nervoso central. Uma terapia que influenciasse seus níveis poderia causar efeitos colaterais importantes.” Uma saída imaginada por Velloso seria identificar compostos que atuassem exclusivamente sobre esses neurônios para, depois, avaliar como afetariam a busca por alimento.
A reportagem acima foi publicada com o título “O controle da vontade de comer” na edição impressa nº 340, de junho de 2024.
Projetos
1. Degeneração e desenvolvimento do sistema nervoso: O papel dos processos epigenéticos (); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Alexandre Hiroaki Kihara (UFABC); Investimento R$ 289.304,54.
2. Caracterização da população de interneurônios e da atividade eletrofisiológica in vivo cortical e hipocampal de ratos adultos submetidos à anóxia neonatal (); Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisador responsável Alexandre Hiroaki Kihara (UFABC); Bolsista Juliane Midori Ikebara; Investimento R$ 335.898,05.
Artigo científico
REIS, F. M. C. V. et al. . Nature Communications. 7 de mar. 2024.