Entendendo as mudanças no Marco Civil da internet brasileira
O Marco Civil será a Constituição da internet brasileira…
Há cerca de um ano, explicamos o Marco Civil: este projeto de lei define princípios para usuários, empresas e governo. Ele dá regras mais claras que provedores de acesso e grandes sites podem seguir. E ele ainda garante em lei diversos direitos para você, como privacidade e neutralidade de rede.
A base do Marco Civil não mudou de um ano para cá; as mudanças apenas reforçaram seus três pontos principais:- neutralidade de rede: o artigo 9 proíbe que os provedores de acesso prejudiquem qualquer tipo de tráfego. Por exemplo, eles não poderiam limitar a velocidade do YouTube, do BitTorrent ou de qualquer outro conteúdo – ou seja, seria o fim do traffic shaping.
- privacidade online: o Marco Civil proíbe que os provedores guardem um log dos sites que você visitou. Seu histórico de internet é apenas seu. No entanto, os provedores são obrigados a armazenar seu registro de conexão por um ano, mostrando quando você usou a internet, e por qual IP – não o que você fez ao navegar. A ideia é identificar o usuário caso ele esteja envolvido em alguma atividade que viole a lei.
- a responsabilidade pelo conteúdo: serviços online não podem responder por infrações cometidas por seus usuários. Por exemplo, se alguém postou algo ofensivo sobre você no Facebook, a rede social não será responsabilizada por isso. No entanto, a empresa de internet é a responsável caso a vítima obtenha uma ordem judicial para remover o conteúdo.
… que ganhou foco ainda maior em privacidade…
Depois que documentos vazados por Edward Snowden revelaram que o Brasil é alvo prioritário da espionagem americana, o Marco Civil foi alterado para proteger mais fortemente a privacidade dos usuários. A maior mudança está na seção que, antes restrita aos registros de conexão, agora trata de proteger seus dados pessoais e conversas privadas.
Sim, já havia uma cláusula garantindo o sigilo de “comunicações pela Internet”, mas dá para entender isso como a privacidade de conversas viajando entre você e seu remetente. E quando elas ficam guardadas em um servidor? Por isso, agora o projeto garante o “sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial”. Se a empresa colocar no contrato uma cláusula que viole o sigilo, ela não terá valor judicial.… e inclui temas polêmicos, como prever a obrigatoriedade de data centers no Brasil…
O artigo mais polêmico do Marco Civil prevê que o poder Executivo poderá exigir que empresas de internet tenham data centers no Brasil. Note que, por si só, ele não obriga Facebook e Google a instalar servidores nacionais: no entanto, ele abre caminho para tanto.Além disso, ele não obriga todo e qualquer serviço a fazer isso: serão apenas os maiores, já que se considera “o porte dos provedores, seu faturamento no Brasil e a amplitude da oferta do serviço ao público brasileiro”. Facebook e Google são contrários à medida.
A proposta é polêmica pois é tecnicamente difícil separar os servidores nacionais dos estrangeiros. Além disso, para evitar a espionagem, não adianta guardar os dados no país: o importante é não direcionar o tráfego nacional por rotas no exterior. Isso pode ser feito ao se investir nos PTTs (pontos de troca de tráfego).
O texto também diz que empresas de internet estrangeiras terão que obedecer as leis brasileiras, protegendo a privacidade e entregando dados pessoais sob ordem judicial. Hoje, empresas podem se recusar a entregar dados aos tribunais se eles estiverem armazenados no exterior. É como o caso recente em que uma briga envolvendo um cão ameaçou o Facebook de fechar no Brasil: a rede social argumentou que não é responsável por gerenciar o conteúdo – isso cabe ao Facebook dos EUA.
Além disso, o contrato ao usuário terá que oferecer uma alternativa de tribunal brasileiro para resolver controvérsias. Caso você quisesse processar hoje o Facebook, por exemplo, seria necessário abrir processo em um tribunal de Santa Clara, EUA; e ele seria julgado de acordo com as leis da Califórnia. O Marco Civil quer mudar isso. Caso alguma empresa de internet viole sua privacidade ou não queira fornecer dados exigidos pela justiça, ela receberá as seguintes sanções: primeiro, uma advertência; depois, multa de 10% sobre seu faturamento no Brasil; suspensão das atividades no país; e, em último caso, proibição de atuar por aqui.… e reforça a neutralidade de rede…
O artigo 9, que trata da neutralidade de rede, praticamente não foi alterado. Na verdade, ele foi levemente reforçado: antes, ele era vago em proibir “prejuízos aos usuários”; agora, ele faz referência ao Código Civil, que obriga a empresa a compensar danos que tenha causado ao usuário.
No mais, tudo continua basicamente o mesmo, incluindo a proibição de “bloquear, monitorar, filtrar ou analisar” o tráfego de internet. Isso significa que provedores não podem fazer traffic shaping no país: ou seja, eles não podem limitar a velocidade de certos sites, como o YouTube.
… enquanto deixa certos assuntos para outras leis…
O Marco Civil não regula sozinho toda a internet brasileira: em certos pontos, ele se apoia em outras leis e decretos. Por exemplo, como fica a violação de direitos autorais na internet? Isso não cabe ao Marco Civil responder. Antes, o projeto abria espaço para o “notice and takedown”: o detentor do direito podia enviar notificação extrajudicial ao site, e ele teria que remover o conteúdo. Há agora um novo parágrafo que diz: “infrações a direitos de autor… dependem de previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de expressão”. Será a nova Lei de Direito Autoral, ainda a ser votada; enquanto ela não é aprovada, o Marco Civil esclarece que continua valendo a lei atual sobre direitos de copyright.E quanto aos crimes digitais? Também não é um assunto para o Marco Civil: em novembro do ano passado, foram aprovados dois projetos de lei que tornam crime os delitos cometidos pela internet – como clonagem de cartão, furto de dados privados e outros. Os projetos eram conhecidos como Lei Azeredo e Lei Carolina Dieckmann.