Imprima seu batom, cultive o seu couro – tecnologia e ciência alteram dinâmicas e produções do mundo fashion

Comprar um bastão de batom está prestes a se tornar algo do passado, ao menos no que depender das tendências projetadas pela L’Oréal. Durante a última edição da Consumer Eletronic Show, uma das principais feiras de tecnologia do mundo, a marca anunciou o Yves Saint Laurent Rouge Sur Mesure, dispositivo capaz de produzir porções de […]
Yves Saint Laurent Rouge Sur Mesure
Batom Yves Saint Laurent Rouge Sur Mesure funciona como uma impressora. Imagem: Divulgação/ L'oreal

Comprar um bastão de batom está prestes a se tornar algo do passado, ao menos no que depender das tendências projetadas pela L’Oréal. Durante a última edição da Consumer Eletronic Show, uma das principais feiras de tecnologia do mundo, a marca anunciou o Yves Saint Laurent Rouge Sur Mesure, dispositivo capaz de produzir porções de batons sob medida e a partir da seleção em uma paleta de cores em um aplicativo. É como se  fosse uma “impressora de batons”: você adquire cartuchos com tonalidades base e o aparelho faz um mix das cores em uma pequena quantidade para você passar na boca. 

A premissa é interessante não apenas no sentido da personalização das cores — que podem ser escolhidas de acordo com o look ou a inspiração em editoriais de moda — mas também porque pode se tornar uma estratégia para mitigar o impacto ambiental do mundo fashion, reduzindo desperdícios e o excesso de embalagens.

O produto está disponível em pré-venda limitada por quase US$ 300 e não tem data de chegada no Brasil. Ainda restam muitas dúvidas relacionadas à durabilidade do equipamento, à toxicidade dos “cartuchos” de batons e até sobre ao modelo de negócios planejado para o futuro. Mas, esse é só um dos exemplos de como a tecnologia pode trazer conceitos de sustentabilidade para dentro do mundo fashion.

Chique é ser circular

Voltada para um trabalho corporativo, conectando-se com governos e universidades, a Fundação Ellen MacArthur defende o conceito da economia circular, que propõe uma maior consciência das empresas sobre o descarte dos resíduos gerados pelas suas produções. Para o mundo fashion, a visão da fundação é que os produtos da moda sejam usados mais vezes, transformados em novos produtos e produzidos a partir de materiais seguros e renováveis. 

A necessidade da moda se renovar a cada estação só piora esse movimento: segundo dados da própria fundação, a cada segundo, um caminhão de lixo cheio de roupas é incinerado ou enviado para aterros. Luisa Santiago, líder da Fundação Ellen MacArthur na América Latina, declara:

“Não olhamos apenas para um ponto da cadeia: pensamos de maneira sistêmica, olhando o sistema inteiro, com uma visão de design, de desenho do sistema, para destravar as barreiras e criar uma mentalidade circular”

Parte do interesse atual em preferir modelos circulares tem a ver com maior pressão do público por mais responsabilidade social das empresas — globalmente, quase 70% dos profissionais de mercado percebem consumidores se preocupando mais com a sustentabilidade agora do que antes da pandemia de Covid-19, segundo o . 

Novas regulamentações do mercado financeiro, que estão (conhecidas pela sigla em inglês ESG) também incentivam o interesse das empresas no assunto. 

 

Em paralelo, a Fundação Ellen MacArthur também destaca haver uma oportunidade econômica para as companhias que adotam modelos de economia circular, que podem gerar mais lucro. “Existe muita perda nos sistemas lineares. Mais do que pensar que ‘vão me dar uma multa’, há uma oportunidade de ter um olhar diferente para a sustentabilidade, com lógicas mais flexíveis que podem gerar mais receita”, defende Santiago. 

Cultivando uma moda mais sustentável

Essa nova demanda por mais sustentabilidade acaba refletida nas descobertas científicas que acontecem em laboratórios, especialmente os que têm características multidisciplinares, que unem profissionais de design e moda a engenheiros de materiais para fabricar tecidos que sejam ecologicamente responsáveis. Uma dessas melhorias tem a ver com o desenvolvimento dos “couros veganos”, nome que faz referência ao estilo de vida que evita consumir produtos de origem animal. 

Boa parte do couro vegano disponível hoje no mercado brasileiro é feito a partir do laminado vegetal, que mescla fibras vegetais, como as vindas do abacaxi, com materiais sintéticos, como reciclados de lona e outros plásticos, para poder oferecer resistência e maleabilidade. Esse tipo de material é muito utilizado nas lojas especializadas em sapatos de couro vegano, por exemplo. 

No entanto, por mais que os laminados vegetais estejam dentro de uma dinâmica circular de economia, já que reaproveitam resíduos de outras indústrias, eles não são as melhores alternativas em sustentabilidade, segundo Luana Vieira, doutora em engenharia de materiais e responsável pelo grupo de pesquisa em Desenvolvimento e Aplicação de Novos Materiais Sustentáveis, da Universidade Católica de Santa Catarina. “Apesar de não ser de origem animal, quando pensamos em termos de sustentabilidade, esse tipo de couro não é tão interessante, porque usa muita química e vem do petróleo, o que acaba prejudicando a natureza também”, explica. 

Internacionalmente, existem iniciativas que estão desenvolvendo fibras de tecidos de fontes das mais diversas, como o couro feito de raízes de cogumelos ou fios de lã com algas. No Brasil, um dos destaques recentes é a produção do “couro de kombucha”, um biotecido com aspecto similar ao do couro desenvolvido a partir do “scoby”, o ingrediente principal da bebida. “Precisamos de cerca de dois litros de kombucha, em média, com uma fermentação de cerca de 10 ou 15 dias, para obter um material com cerca de 2cm de espessura e que já oferece uma lâmina interessante para confeccionar peças”, detalha Vieira. 

 Algumas peças artesanais produzidas com "couro de kombucha", feitas pela professora Luana Vieira, da Universidade Católica de Santa Catarina. (Créditos: Acervo Pessoal / Luana Vieira)


Algumas peças artesanais produzidas com “couro de kombucha”, feitas pela professora Luana Vieira, da Universidade Católica de Santa Catarina. (Créditos: Acervo Pessoal / Luana Vieira)

Por enquanto, a produção do biotecido de kombucha ainda é uma manufatura, mas Luana garante que o tecido tem resistência e maleabilidade, suportando não só costuras, mas também tingimentos. O único porém é o odor do material, que pode ter um perfume característico por algum tempo. “O cheiro vai saindo com o tempo, mas é bem forte quando a peça é recém-feita”, confessa. 

Na visão de Santiago, ambas as iniciativas — tanto a impressora de batons quanto a produção de couro com fontes vindas do reino vegetal, monera e fungi — são importantes, mas é preciso ter em mente que não basta produzir novos tipos de produtos ou materiais, mas também pensar em toda a cadeia da qual eles fazem parte. “Claro que um couro vegano é bom, mas um tradicional também pode ser ecológico”, provoca a representante da Fundação Ellen MacArthur, reforçando que a economia circular sugere atenção ao processo como um todo, que vai desde a produção até o modelo de negócios. “Não basta ser um tecido biodegradável, ele precisa ser biodegradado, estar dentro de um processo que termine na compostagem. Da mesma maneira que não adianta ter um material reciclável, ele precisa ser reciclado de verdade”, frisa. 

Ou, adaptando o velho ditado popular, de boas intenções, o mercado está cheio. É preciso que existam também boas execuções, desde a tecnologia das máquinas ou a engenharia dos materiais até a disponibilização no mercado, de forma que a inovação consiga ser sustentável, circular e adaptada às necessidades dos nossos tempos.

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