Ciência

Grupo da USP e do Emílio Ribas analisa em detalhes lesões da febre amarela no coração

Estudo demonstra pela primeira vez o substrato anatômico para as arritmias ocorridas na febre amarela humana
Imagem: Erskine Palmer / CDC-PHIL

Para responder a lacunas no conhecimento da febre amarela (FA), um grupo de pesquisadores do Hospital das Clínicas, do Instituto do Coração (InCor), do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e do Instituto de Infectologia Emílio Ribas (IIER) decidiu estudar a patogenia da lesão cardíaca na FA.

A equipe foi coordenada pelo cardiologista  e pelo infectologista e patologista , ambos da FMUSP. “Ainda não existe tratamento específico para a febre amarela, ou seja, os pacientes recebem suporte em terapia intensiva, como transfusão sanguínea, ventilação mecânica e tratamento de convulsões; os casos graves têm alta mortalidade, acima de 35%”, alerta Giugni. A pesquisa recebeu  no contexto do Projeto Temático MODAU (“Uso de modernas técnicas de autópsia na investigação de doenças humanas”).

Em  recentemente no periódico eBioMedicine (uma das publicações open access da revista médica britânica The Lancet), os autores descrevem em detalhes dados clínicos, laboratoriais e aspectos macro e microscópicos do tecido cardíaco, por meio das autópsias de casos fatais da febre amarela realizadas durante a epidemia ocorrida do final de 2017 até o início de 2019 no Estado de São Paulo – a maior registrada no século 21 até o momento. Nesse período, o HCFMUSP e o IIER foram hospitais de referência para tratamento da doença na Região Metropolitana de São Paulo.

O vírus da FA atinge especialmente o fígado, causando em cerca de 5% a 30% dos casos hepatite aguda grave por lesão direta na célula hepática, o hepatócito. A hepatite da febre amarela pode ser fulminante, tendo o paciente náuseas, vômitos, pele e mucosas de coloração amarelada (icterícia), alterações hemorrágicas (hemorragias em mucosas, trato gastrointestinal, pulmonar e cerebral) e coma hepático.

Mas, além do fígado, outros órgãos também são acometidos pela doença, tais como os rins, cérebro, pulmões, baço, pâncreas e coração. Ainda há pouco conhecimento de como o vírus da febre amarela atua nesses órgãos, causando lesão. Por exemplo, é sabido que pacientes com febre amarela apresentam hipotensão refratária (choque) e, nos casos graves, arritmias cardíacas, dentre elas a bradicardia (tal arritmia, que ocorre enquanto o paciente apresenta febre, foi descrita em meados do século 19 pelo médico americano Jean Charles Faget – recebendo o epônimo de “sinal de Faget”).

Descobertas

Os principais achados encontrados pelos autores foram hipertrofia da célula do músculo cardíaco (93,2%), alterações no endotélio vascular (célula que reveste a parte interna dos vãos, responsável pela integridade do vaso e pelo equilíbrio da coagulação do sangue) em 91,8% dos casos, causando hemorragias, edema e microtromboses no coração; destruição de células cardíacas (68,5%); miocardite viral (12,3%); e miocardite secundária por bactérias e fungos em 6,8%. O sistema de condução cardíaco, que gera o estímulo elétrico que promove a contração e o ritmo cardíaco, estava alterado (hemorragias, edema e inflamação) em oito casos examinados, demonstrando, pela primeira vez, o substrato anatômico para as arritmias ocorridas na FA humana.

Por meio de técnicas modernas de biologia molecular, o RNA do vírus da febre amarela foi detectável em 95,7% dos casos, bem como antígenos do vírus nas células endoteliais e em células inflamatórias, indicando uma ação direta do vírus no tecido cardíaco. As principais células inflamatórias encontradas nos casos com miocardite foram macrófagos ativados. Dentre vários mediadores inflamatórios pesquisados por proteômica, sobressaiu-se a proteína interferon gamma-induced 10 (também conhecida como IP-10 ou CXCL-10), uma quimiocina produzida por macrófagos que atrai mais células inflamatórias para o sítio de lesão causada por vírus. Altos níveis dessa quimiocina já foram descritos em pacientes com COVID-19, dengue e zika e têm sido associados a pior prognóstico.

“A importância deste trabalho é que podemos compreender melhor o que ocorre no coração em pacientes com febre amarela grave e com reações vacinais graves, pois tais alterações podem ser mascaradas, ou subestimadas, pela hepatite fulminante, típica da doença”, explica Duarte Neto. A lesão miocárdica é frequente nos casos graves devido a mecanismos multifatoriais, incluindo dano direto mediado pelo vírus, lesão de células endoteliais e resposta inflamatória (miocardite). “Com esse entendimento, é possível implementar medidas diagnósticas e terapêuticas para prevenir e tratar a injúria cardíaca da FA”, complementa o especialista.

Doença reemergente

Cerca de 700 casos de febre amarela foram notificados no Estado de São Paulo entre 2017 e 2019, com 232 óbitos (33,3%). Diversos fatores contribuíram para o estabelecimento da epidemia: alterações ambientais, expansão das áreas urbanas para regiões de Mata Atlântica onde ocorria aumento da circulação viral, com indivíduos não imunizados adentrando a mata. A FA é considerada atualmente uma doença reemergente no Brasil e na América Latina, com indicação de vacinação em todo o território nacional. No entanto, ainda há um contingente muito grande de pessoas suscetíveis não imunizadas, especialmente em áreas urbanas não endêmicas e altamente povoadas, que podem sofrer com epidemias decorrentes da expansão do vírus no território nacional, como aconteceu em São Paulo, e em todo o Sudeste do Brasil, durante as epidemias do final da década de 2010.

A doença tem duas formas de transmissão: a silvestre, onde o homem se infecta pela picada de mosquitos Haemagogus e Sabethesinfectados pelo vírus da FA, e a forma urbana transmitida pelo Aedes. A epidemia de São Paulo de 2017-2019 foi considerada como selvática. Há ainda uma terceira forma de FA, a febre amarela vacinal (ou “doença viscerotrópica associada à vacina 17DD”), que é uma reação grave que alguns raros indivíduos podem ter à cepa atenuada do vírus da FA contida na vacina.

O artigo Understanding yellow fever-associated myocardial injury: an autopsy study também é assinado por Vera Demarchi Aiello, Caroline Silverio Faria, Shahab Zaki Pour, Marielton dos Passos Cunha, Melina Valdo Giugni, Henrique Trombini Pinesi, Felipe Lourenço Ledesma, Carolina Esteves Morais, Yeh-Li Ho, Jaques Sztajnbok, Sandra de Morais Fernezlian, Luiz Fernando Ferraz da Silva, Thais Mauad, Venâncio Avancini Ferreira Alves, Paulo Hilário do Nascimento Saldiva, Leila Antonangelo e Marisa Dolhnikoff. O paper pode ser lido na íntegra em .

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