Gelo exótico contribui para o entendimento das anomalias magnéticas de Netuno e Urano
O gelo comum – esse que é produzido nas geladeiras domésticas e conhecido cientificamente pelo nome de gelo Ih – não é a única fase cristalina da água. Há mais de 20 diferentes fases possíveis. Uma delas, chamada de “gelo superiônico” ou “gelo XVIII”, apresenta especial interesse. Entre outros motivos, pelo fato de compor grande parte do estofo dos planetas Netuno e Urano, também conhecidos como “gigantes de gelo”.
De Koning coordenou o estudo que resultou no artigo , publicado este mês como do periódico Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America (PNAS).
Experimentos e simulações
Na Terra, um experimento na revista Nature em 2019 conseguiu produzir uma minúscula quantidade de gelo XVIII que se manteve por um nanossegundo, isto é, um bilionésimo de segundo, antes de se desestruturar. Isso foi conseguido por meio de ondas de choque criadas por laser e lançadas sobre uma amostra de água.
Conforme descreveram os autores do experimento, seis feixes de laser de alta potência foram disparados em uma sequência temporal precisa para comprimir, por meio de ondas de choque, uma fina camada de água encapsulada entre duas superfícies de diamante. As ondas de choque reverberaram entre os dois diamantes rígidos, proporcionando uma compressão homogênea da água que resultou, por um intervalo de tempo diminuto, na fase cristalina superiônica. “No estudo realizado agora, não fizemos um experimento físico real, mas usamos simulação computacional para investigar as propriedades mecânicas do gelo XVIII e descobrir como suas deformações influenciam os comportamentos observados nos planetas Netuno e Urano”, relata De Koning.O pesquisador conta que o estudo se valeu da Teoria do Funcional da Densidade (Density Functional Theory ou DFT), um método derivado da mecânica quântica e usado em física dos sólidos para resolver estruturas cristalinas complexas. “Investigamos, primeiramente, o comportamento mecânico de uma fase sem defeitos, que não existe no mundo real. Depois, acrescentamos defeitos para saber que tipos de deformações macroscópicas resultam disso”, explica.
Quando se fala sobre defeitos em cristais, a expressão geralmente se refere a defeitos pontuais, caracterizados pela vacância de íons ou pela intrusão de íons de outros materiais na rede cristalina. Porém, não é disso que se trata aqui. O defeito mencionado por De Koning não é pontual, mas linear. É chamado de “discordância” e ocorre quando uma fase do cristal desliza sobre outra fase. O resultado é parecido com o que ocorre quando se empurra um tapete sobre o chão no sentido longitudinal, produzindo uma ondulação transversal no tapete. “Em física de cristais, a discordância foi postulada em 1934. Mas só foi observada experimentalmente pela primeira vez em 1956. É um defeito que explica um grande número de fenômenos. Costumamos dizer que ele está para a metalurgia assim como o DNA está para a genética”, sublinha o pesquisador. No caso do gelo superiônico, a soma de discordâncias produz uma deformação macroscópica bastante conhecida por mineralogistas, metalurgistas e engenheiros: o cisalhamento. “Em nosso estudo, calculamos, entre outras coisas, o quanto é preciso forçar o cristal para ele se romper por meio de cisalhamento”, destaca De Koning.Para isso, o pesquisador e seus colegas precisaram considerar uma célula bastante extensa do material, com cerca de 80 mil moléculas. Os cálculos exigiram técnicas computacionais extremamente pesadas e sofisticadas, com o emprego de rede neural e aprendizado de máquina (machine learning), e a composição de várias configurações baseadas em cálculos DFT.
“Este foi um aspecto bastante interessante de nosso estudo, a integração de conhecimentos de diversas áreas: metalurgia, planetologia, mecânica quântica e computação de alto desempenho”, conclui De Koning. O trabalho recebeu apoio da FAPESP por meio de concedida ao primeiro autor, , sob a supervisão de De Koning; de um coordenado pelo pesquisador da Unicamp ; e do (), financiado no âmbito do programa Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPIDs).O artigo Plastic Deformation of Superionic Water Ices pode ser acessado em: .