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Fisiologia: a colaboração entre ciência e futebol

Estudos sobre as mais recentes Copas do Mundo aproximam prática esportiva e pesquisa acadêmica

Fisiologia: A colaboração entre ciência e futebol

Texto: Maria Guimarães/

Passadas as copas América e Europa, quem é fã de futebol provavelmente tem algo a dizer sobre por que as seleções da Argentina e da Espanha se saíram melhor do que as outras. Não falta opinião, mas há quem busque apoio científico. É o que faz, há alguns anos, o fisiologista do exercício Ronaldo Thomatieli Santos, do campus da Baixada Santista da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Ele e o profissional de educação física Elias de França, pesquisador em estágio de pós-doutorado em seu laboratório, em parceria com o grupo do cientista do esporte Luís Branquinho, do Instituto Politécnico de Portalegre, em Portugal, têm analisado dados fornecidos pela Federação Internacional de Futebol Associado (Fifa) sobre as seleções nas mais recentes copas do mundo masculina e feminina para avaliar quais estratégias são mais bem-sucedidas. Também estudam informações recolhidas em jogos e treinos do São Paulo Futebol Clube para entender o que é mais eficaz em termos de treinamento e estimar o risco de lesão de cada jogador, de forma a contribuir para o trabalho da comissão técnica.

A meio-campista Adriana em 2023: próximo mundial feminino será no Brasil. Imagem: Thais Magalhães / CBF

“A Fifa tem um sistema de filmagem especial que registra os movimentos dos jogadores e da bola durante o jogo nas copas do mundo”, explica Santos. São estatísticas muito mais detalhadas do que os números que os canais esportivos de TV apresentam. Inclui, por exemplo, se os passes são longos ou curtos, longitudinais ou diagonais, quais setores são mais usados e a velocidade dos jogadores. “São centenas de variáveis.”

Os pesquisadores desenvolveram um modelo de inteligência artificial para analisar esses dados de forma qualitativa e quantitativa, separando em conjuntos que resumem o estilo de jogo de cada equipe. “A inteligência artificial nos permite fazer em segundos o que levaria meses à mão”, explica Santos. Afinal, são dezenas, às vezes centenas, de partidas em cada campeonato.

As análises evidenciaram diferenças entre os times dos vários continentes. As seleções europeias fazem mais gols, mais assistências, atacam mais e passam um tempo maior no campo de ataque. Já as sul-americanas conseguem mais finalizações e privilegiam o tempo no meio de campo, de acordo com artigos publicados em março e abril nas revistas Trends in Sport Sciences e Journal of Human Sport & Exercise. Em número de gols de bolas paradas, os dois continentes se equivalem. Já os times africanos têm menos posse de bola, chutam menos, acertam mais raramente no alvo e o número de passes é menor, com ataques rápidos e muitas faltas que geram mais cartões amarelos.

De maneira geral, os melhores times têm mais posse de bola, maior volume de passes e os atacantes recebem a bola no campo de ataque, a partir de cruzamentos e passes longos. Como as equipes mantêm a posse de bola, atuam menos na defesa. Ficar no campo de ataque, impondo seu estilo de jogo, permite criar mais oportunidades.

No futebol feminino, a constituição física faz mais diferença, enquanto entre os homens o aprimoramento técnico e tático se sobressai. “A seleção brasileira tem capacidades físicas – como força, flexibilidade e resistência – menos desenvolvidas em relação às europeias e norte-americanas, e isso se torna uma limitação”, ressalta o pesquisador.

Uma primeira análise dos dados da Copa do Mundo feminina de 2023, na Austrália e na Nova Zelândia, indica que o time mais bem-sucedido (Espanha) foi o que se caracterizou por mais velocidade, de acordo com artigo publicado em março na revista International Journal of Performance Analysis in Sport. A rapidez se mostrou associada à capacidade de transpor a defesa e receber bolas no campo de ataque. O trabalho também ressalta que um bom desempenho em variáveis como posse e progressão de bola, assim como passes longos que furam a defesa, permitem que as atletas corram menos, enquanto o estilo de trocas rápidas de passes leva a percorrer distâncias maiores.

Times europeus passam mais tempo no ataque, como a Espanha (à esq., em amistoso contra o Brasil neste ano); a seleção brasileira feminina sofre pela estatura menor (à dir., em derrota contra a França em 2023). Imagem: Rafael Ribeiro / CBF | Thais Magalhães / CBF

Ciência em campo nacional

Santos ressalta que esses resultados valem para torneios como os mundiais da Fifa, que envolvem até sete partidas por equipe. Campeonatos de pontos corridos têm mais margem para erro, o que leva a estratégias distintas. Para times brasileiros, que podem jogar cerca de 70 partidas em um ano, com muitas viagens, é impossível manter a intensidade do campeonato mundial.

Em uma parceria com o time masculino do São Paulo, a equipe da Unifesp recebe os dados gerados pelos aparelhos de monitoramento que os jogadores usam presos às costas por um suporte, além de algumas informações cedidas pela equipe médica. Com isso, conseguem acesso a dados como a distância percorrida por jogador, a velocidade e as mudanças de direção no movimento.

A equipe técnica faz uso limitado desses recursos. “Em nossa rotina diária é muito difícil transformarmos o enorme volume de dados em informação”, completa o preparador físico Adriano Titton, responsável por iniciar a parceria com Elias de França em 2019, quando era analista de desempenho no time de base do tricolor paulista, e propôs um monitoramento que permitisse auxiliar no desenvolvimento dos atletas, medindo a evolução ou involução de suas capacidades.

A partir de 2021, quando passou a atuar como preparador físico na equipe profissional, Titton manteve a parceria, agindo como intermediário entre os pesquisadores e a comissão técnica. A ideia é usar os dados gerados pelos aparelhos para estimar o risco de lesão de cada jogador, dividido em três níveis. De posse dessas informações, a equipe técnica decide quais riscos é necessário correr em uma determinada partida. “Nosso índice de acerto atual é de mais de 90%”, afirma Santos.

As avaliações também são úteis como gerenciadoras do treino. “Podemos ajustar a carga do treinamento e potencializar a recuperação de forma individualizada”, conta Titton. Com base na análise de mais de 5 mil treinos de jogadores que tinham passado ao menos 80 minutos em campo na semana, incluindo a potência atingida na movimentação, os pesquisadores observaram, por exemplo, que exercícios de mudança de direção, desaceleração e pulos não ajudam a melhorar a velocidade de corrida em linha reta. Atletas com dificuldade de melhorar a velocidade poderiam reduzir os treinos que envolvam impactos mecânicos, de acordo com artigo publicado em março na revista Frontiers in Physiology. O trabalho já foi ampliado para 11 mil sessões e deu origem a prescrições de treinamento e a um artigo em fase de edição.

Quando não havia tecnologia, o trabalho era ainda maior. “Eu usava lápis e papel, improvisava muita coisa”, relembra o fisiologista Turibio Leite de Barros, que não participa dos estudos do grupo de Santos. Por 35 anos ele foi professor da Unifesp na área de fisiologia do exercício e por 25 anos, em paralelo, trabalhou como fisiologista do São Paulo, até 2010, quando se aposentou nas duas funções. Cada página tinha um campo de futebol em escala 1:300, e era ali que ele marcava um pontilhado quando um jogador andava, um tracejado quando trotava, uma linha contínua quando corria. “A cada 10 minutos eu trocava a folha.” Depois pegava a régua e media os deslocamentos.

“Quando comecei, em 1985, nenhum clube tinha essa área de ciência aplicada.” Barros conta que todos os atletas realizavam o mesmo treinamento. “Criamos uma avaliação individual que permitia identificar as potencialidades e deficiências de cada um, assim como necessidades de atendimento personalizado”, diz. O resultado foi um “aptidograma”, ou um perfil de aptidão física que envolvia força, velocidade, capacidade de impulsão, flexibilidade, capacidade aeróbica e anaeróbica.

Ele também desenvolveu uma forma de avaliar a capacidade de atuar em altitude. “Fizemos um teste no qual o atleta corria na esteira respirando o ar normal da sala, ou uma mistura gasosa que mandei fazer, replicando a que existe em La Paz”, conta – a altitude de 3.640 metros na capital boliviana representa um desafio para atletas. Alguns deles demonstraram um déficit acentuado de desempenho com o teor menor de oxigênio, outros sofreram pouco e poderiam ter prioridade na escalação. “Não tínhamos como anular os efeitos da altitude, então avaliar os atletas é o que podíamos fazer.”

Ele conta que o sucesso do encontro entre o conhecimento científico e a prática esportiva teve muita visibilidade e a prática foi disseminada. “O fisiologista se tornou uma presença consagrada no futebol.”

Uma versão deste texto foi publicada na edição impressa .

Projeto
Análise do efeito agudo da associação da suplementação de L-Leucina e do sprint intervalado em marcadores inflamatórios, neuropeptídeos relacionados ao controle do apetite e seus impactos na percepção da saciedade e ingestão alimentar em adultos obesos (); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Ronaldo Vagner Thomatieli dos Santos (Unifesp); Bolsista Elias de França; Investimento R$ 347.308,83.

Artigos científicos
FRANÇA, E. de et al. . Trends in Sport Sciences. v. 31, n. 1, p. 5-16. 29 mar. 2024.
BRANQUINHO, L. et al. . Journal of Human Sport & Exercise. v. 19, n. 2, p. 654-66. 1º abr. 2024.
BRANQUINHO, L. et al. . Frontiers in Physiology. v. 15, 1341791. 5 mar. 2024.
BRANQUINHO, L. et al. . International Journal of Performance Analysis in Sport. On-line. 27 mar. 2024.

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