Os trabalhadores por trás da construção dos estádios climatizados e luxuosos da Copa do Catar são, em sua grande maioria, migrantes vindos do Nepal, um pequeno país de 30 milhões de habitantes entre a Índia e a China.
Por estarem em maior número, é também sobre os nepaleses que recaem a maioria dos abusos e explorações denunciados por movimentos de boicote à Copa, que começa neste domingo (20).
Dados do governo do Nepal apontam que 605 mil cidadãos saíram do país em 2021. Desses, 185 mil foram para o Catar. O número só aumenta se contarmos a migração que se intensificou desde 2010, quando a FIFA confirmou a escolha do país árabe para sediar o Mundial.
Tem motivo: no Nepal quase não há indústria. Os empregos se resumem à agricultura e ao turismo, setores que não comportam toda a força de trabalho do país. Por isso, muitos – especialmente os mais jovens – são forçados a procurar remuneração no exterior.
Por causa das saídas contínuas, mais de 25% da população nepalesa deixou o país desde 1994, segundo dados do governo local acessados pelo jornal The . Em consequência, um quarto da renda do Nepal vem do dinheiro enviado pelos cidadãos que estão fora do país.
No Catar, os migrantes – em especial nepaleses e indianos – já representam 85% da população de pouco mais de 3 milhões de pessoas. É sobre eles que estão os maiores índices de pobreza: ativistas denunciam que a maioria dos salários não passa de 1,30 euro por dia na construção civil, onde estão os canteiros de obra para os estádios da Copa.
Mortes “inexplicáveis”
Os baixos salários, escasso acesso à saúde e condições insalubres de trabalho sob temperaturas que beiram os 50ºC foram relacionados à morte de 2,1 mil trabalhadores nepaleses no Catar desde 2010.
Os trabalhadores sucumbem a uma série de doenças, como ataques cardíacos prematuros, insuficiência renal crônica e outros problemas inexplicáveis, geralmente relacionados ao calor. Mas também há muitos suicídios: na última década, foram quase 200 em trabalhadores nepaleses no Catar.
A grande maioria dos mortos são homens entre 20 e 45 anos. Todos passaram por exames médicos – uma obrigação das leis de migração – que atestam condições de saúde satisfatórias antes de deixarem o Nepal.
Quando são “devolvidos” ao país, os trabalhadores nepaleses voltam em caixões onde está escrito “morte natural”. Eles não passam por autópsias no Catar.
“É realmente uma coisa misteriosa porque eles estão clinicamente aptos aqui”, disse Anjali Shrestha, funcionário do conselho de empregos estrangeiros do Nepal, ao NY Times. “É claro que as pessoas do Nepal também morrem. Mas não assim”.
Doha só admite 37 mortes de trabalhadores relacionados à construção dos estádios da Copa. Desses, três morreram em acidentes de trabalho, segundo o governo catari.
Mudança de postura?
Mesmo com as denúncias, ativistas migrantes dizem que têm medo de pressionar demais por reformas. Isso porque muitas pessoas pobres de países vizinhos competem pelo trabalho e pelos salários para enviar dinheiro para as famílias.
Por isso, movimentos de direitos humanos criticaram a escolha do Catar para sediar a Copa em 2022. Outros motivos incluem suspeitas de pagamento de propina para a escolha do país árabe sem tradição em futebol e repressão aos direitos das mulheres e LGBTQIA+.
A seleção da Dinamarca, por exemplo, deve jogar com uniformes pretos em luto aos trabalhadores mortos e optou por não levar os familiares dos jogadores para a competição. Em cidades da Alemanha, Espanha e Bélgica, os bares não exibirão os jogos.
Os dirigentes do Catar, por sua vez, dizem que as críticas são injustas e que fizeram avanços para melhorar as condições de vida dos migrantes. O governo determinou um salário mínimo de US$ 275.
Outro progresso, segundo Doha, foi a abolição do sistema kafala, que permitia aos empregadores manter os passaportes dos trabalhadores. Essa medida impedia que os migrantes deixassem o país ou mudassem de emprego sem permissão.
Críticos, porém, dizem que as mudanças só aconteceram depois da conclusão de grande parte dos estádios e que as novas regras valem apenas para os funcionários dos projetos da Copa. Juntas, as obras do primeiro Mundial em um país árabe custaram US$ 220 bilhões.