Os antropólogos sabem de pelo menos duas espécies antigas de pequenos humanos que viveram há mais de 50 mil anos nas ilhas do sudeste da Ásia. A origem deles ainda é desconhecida, mas uma nova publicada na Nature Ecology & Evolution sugere que eles estão relacionados aos denisovanos e neandertais — e, por consequência, aos humanos modernos.
Não foi encontrada nenhuma evidência de cruzamento entre humanos modernos (Homo sapiens) e duas espécies extintas de humanos de baixa estatura, conhecidas como Homo floresiensis (comumente conhecido como “hobbits” da Ilha Flores, na Indonésia) e (encontrado na Filipinas). Evidências fósseis dessas duas espécies, encontradas em 2004 e 2019, respectivamente, sugerem que esses humanos que viviam nas ilhas tinham por volta de 109 cm, uma possível consequência de nanismo insular, um processo evolutivo no qual o tamanho do corpo de uma espécie diminui com o tempo como consequência do acesso limitado aos recursos de sobrevivência.
Ao mesmo tempo, o novo artigo, liderado por João Teixeira da Universidade de Adelaide, na Austrália, fornece mais uma confirmação do cruzamento entre os denisovanos e humanos modernos, mais especificamente humanos modernos que vivem na parte insular do Sudeste Asiático, uma área que abrange ilhas tropicais entre o Leste Asiático, a Austrália e a Nova Guiné.
Os denisovanos — um grupo irmão dos neandertais — alcançaram a área cerca de 50 mil a 60 mil anos atrás, apesar de os arqueólogos ainda não terem descoberto um fragmento de evidência fóssil que possa ser relacionado aos chamados “denisovanos do sul”. Isso é obviamente estranho, dada a esmagadora evidência genética de que eles viveram nesta parte do mundo. Contudo, isso significa que há importantes descobertas arqueológicas ainda à espera de serem encontradas. Pelo menos em teoria.
Portanto, os humanos modernos cruzaram com denisovanos, mas não com o H. floresiensis ou H. luzonensis, sugere Chris Stringer, coautor do artigo e antropólogo do Museu de História Natural de Londres. Esse é um resultado importante, porque poderia ajudar a explicar a presença dos humanos de tamanho diminuto, que morreram há cerca de 50 mil anos, nesta parte do mundo. De forma empolgante, isso pode significar que esses “superarcaicos”, na linguagem dos pesquisadores, “não são superarcaicos, afinal, pois estão mais intimamente relacionados aos humanos [modernos] do que se pensava”, explicou Teixeira. Em outras palavras, o H. floresiensis ou o H. luzonensis podem realmente ser os denisovanos do sul que não haviam sido encontrados até agora.
Dado que as populações humanas atuais na porção insular do Sudeste Asiático retiveram uma quantidade significativa de DNA da espécie denisovana, os autores se perguntaram se H. floresiensis e H. luzonensis também cruzaram com humanos modernos. Também era possível, embora fosse improvável, que outro humano antigo chamado H. erectus — que na ilha de Java, na Indonésia, até cerca de 117 mil a 108 mil anos atrás — pudesse ter contribuído para a ancestralidade humana moderna. Na verdade, um cenário possível é que os superarcaicos descendam do H. erectus.
Deste modo, os cientistas estudaram o DNA de 400 humanos modernos, dos quais mais da metade eram descendentes da porção insular do Sudeste Asiático. A equipe procurou por assinaturas genéticas indicativas de eventos de cruzamento relacionados a “espécies de hominídeos profundamente divergentes”, disse Teixeira. A parte insular do Sudeste Asiático é a “região geográfica onde há maior probabilidade de que tais eventos poderiam ter ocorrido devido à presença mencionada de H. floresiensis, H. luzonensis e talvez do H. erectus”, acrescentou.
Entretanto, é importante notar que os cientistas não possuem genomas para as duas espécies de baixa estatura ou do H. erectus para esse assunto.
“Não há genomas de ‘primeira mão’ do tipo que temos de neandertais e denisovanos, mas há pedaços de DNA ‘de segunda mão’ que parecem vir deles após o cruzamento com uma população superarcaica”, explicou Stringer. “Eles podem ser reconhecidos por sua divergência maior do que a média dentro do genoma e também, se houve cruzamento recente, as fitas de DNA teriam sido menos embaralhadas e, portanto, encontradas em pedaços maiores e mais primitivos.”
Para deixar claro, os cientistas não estão procurando por genomas relacionados a espécies específicas, mas evidências de cruzamento, que deixam uma assinatura genética pronunciada em todo o genoma.
Os resultados mostraram que os humanos modernos não cruzaram com as duas pequenas espécies humanas, mas a equipe confirmou a ancestralidade denisovana entre indivíduos da parte insular do Sudeste Asiático. Como disse Stringer, “o DNA das populações locais mostra sinais de ancestralidade dos denisovanos, que atualmente são conhecidos apenas por fósseis na Ásia, mas nenhuma evidência genética derivada de humanos antigos cujos ossos foram realmente encontrados na área”.
Na verdade, a evidência fóssil de denisovanos não existe na parte insular do Sudeste Asiático, e a evidência que existe em outros lugares é esparsa. Além da genética, a presença desta espécie humana é conhecida por um osso de dedo, vários dentes e fragmentos de crânio encontrados na Sibéria, bem como um de 160 mil anos encontrado em uma caverna no planalto tibetano.
A nova pesquisa confirma que as duas espécies superarcaicas “não contribuíram com a ancestralidade das populações humanas modernas” ou, se o fizeram, “não são tão divergentes como atualmente se supõe, com base em comparações morfológicas”, disse Teixeira. Esses humanos de baixa estatura podem parecer muito diferentes dos humanos modernos, mas isso pode ser uma ilusão, pois o DNA deles pode ser muito semelhante ao nosso, especialmente dos denisovanos, conforme essa linha de pensamento.
Para Teixeira, a ausência desse cruzamento combinada com a ancestralidade denisovana difundida significa que as duas espécies superarcaicas podem representar os denisovanos ausentes na parte insular do Sudeste Asiático, ou algum tipo de ramificação.
“Acredita-se que os hominíneos fósseis da parte insular do Sudeste Asiático representem uma divisão muito mais antiga, de aproximadamente 2 milhões de anos atrás. Mas essas estimativas baseiam-se em comparações morfológicas e no pressuposto de que descendem do H. erectus”, explicou. “Nossos resultados mostram que essas espécies superarcaicas não cruzaram com humanos modernos na parte insular do Sudeste Asiático. E ficam os questionamentos: e se estivermos errados? E se a ocupação de hominídeos na parte insular do Sudeste Asiático não fosse contínua? E se a ancestralidade denisovana na parte insular do Sudeste Asiático vier desses grupos?”
“Ninguém sabe ao certo como deve ser a aparência de um denisovano, nem quanta variação morfológica existia nas suas diferentes populações”, explicou. “Se houver a revelação de que os superarcaicos são, na verdade, os denisovanos do sul, isso pode ter sérias implicações para a paleoantropologia.”
Stringer, por outro lado, não tem tanta certeza, já que sua interpretação das evidências sugere uma linhagem diferente para a minúscula espécie humana. “Os fósseis conhecidos de H. erectus, H. floresiensis e H. luzonensis podem parecer estar no lugar e na hora certa para representar os misteriosos ‘denisovanos do sul’, mas seus ancestrais provavelmente já existiam na parte insular do Sudeste Asiático muito antes de a linhagem denisovana ter evoluído, possivelmente há 700 mil anos atrás”, explicou.
Quando indaguei Teixeira sobre esta aparente inconsistência, ele me disse que “nem sempre os coautores concordam em tudo”. Independentemente disso, todos acreditam que o cruzamento entre os denisovanos do sul e os humanos modernos aconteceu na Ilha do Sudeste Asiático.
“A presença das maiores quantidades de DNA do tipo denisovano em regiões como Papua Nova Guiné e Austrália sugere que o cruzamento ocorreu na parte insular do Sudeste Asiático, o que não parece tão provável, em minha opinião”, apontou Stringer. “Meu palpite é que Sumatra, Bornéu e Celebes foram as terras natais dos ‘denisovanos do sul’ que ainda não foram encontrados e muito provavelmente encontraremos lá fósseis.”
Stringer disse que esses resultados dependem das amostras analisadas e que mais amostras provavelmente fornecerão uma imagem mais completa.
Apesar de esclarecedor, o artigo também levanta algumas questões muito importantes. Em primeiro lugar, onde estão os fósseis de denisovanos na parte insular do Sudeste Asiático? E, como Teixeira pergunta, “já os encontramos, mas podemos assumir que esses fósseis representavam parentes muito mais distantes?”. Em outras palavras, talvez os “hobbits” fossem os denisovanos do sul o tempo todo. Descobertas futuras, ao que parece, nos aguardam.