Ciência

Etologia: primatas urbanos alteram comunicação e dieta

Sauim-de-coleira, em Manaus, usa cheiro para complementar as vocalizações, e bugio gaúcho acrescenta churrasco ao hábito vegetariano
Imagem: Wikimedia Commons/Reprodução

Texto: Maria Guimarães/Revista Pesquisa Fapesp

No meio do burburinho urbano, com ruídos como o do tráfego constante de carros, crianças ensaiando músicas de Natal na escola e instruções de manobras militares aos brados em um quartel, pequenos macacos manauaras tentam se comunicar. São os sauins-de-coleira (Saguinus bicolor), que existem apenas na região de Manaus, no Amazonas, e disparam gritos finos para afirmar sua presença. “Nossa hipótese era de que eles trocariam de modal de comunicação nas áreas mais ruidosas”, diz a bióloga Tainara Sobroza, professora substituta na Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

Durante o doutorado, realizado no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), ela foi atrás de grupos desses sauins em trechos de mata urbana para verificar se eles deixariam os gritos de lado em prol de um tipo de comunicação que competisse menos com a cidade. Descobriu que eles mantêm as vocalizações. Mas passam a recorrer com mais frequência à comunicação química, deixando sinais de cheiro nas árvores. “Eles têm glândulas nas regiões genital, perianal e do esterno, e se esfregam nas árvores para deixar um sinal”, conta ela, que publicou os resultados em setembro na revista Ethology Ecology & Evolution.

Foram nove grupos estudados, em fragmentos de floresta com áreas entre 24 hectares (ha) e 730 ha. Este último, no campus da Ufam, “na Mata Atlântica seria considerada floresta contínua”, compara Sobroza. Na Amazônia, é parte da área urbana.

É difícil enxergar com exatidão o que fazem lá no alto das árvores esses primatas que pesam no máximo 600 gramas, com porte de esquilos e que vivem em grupos matriarcais de até 13 indivíduos. “Só uma fêmea se reproduz e todos do grupo ajudam a cuidar dos filhotes, em geral um par de gêmeos a cada vez”, conta a pesquisadora, que munida de binóculos conseguia ver quando um deles esfregava a parte de trás do corpo em algum galho ou gritava. Quanto mais barulhento o local, mais frequente o comportamento.

As observações aconteceram ao longo de um ano, no qual cada grupo era seguido por 10 dias consecutivos, das 6h às 17h. Para encontrá-los, era preciso um processo de habituação prévio até que fosse possível capturá-los em armadilhas instaladas nas árvores, caixas gradeadas que não causam danos aos animais. “Esse processo levava até quatro meses, por isso só conseguimos acompanhar nove grupos”, conta Sobroza. A captura era necessária para instalar coleiras com transmissor de sinal de rádio, sem as quais era improvável encontrar o mesmo grupo no dia seguinte.

Uma interpretação da comunicação complementar por canais alternativos – ou multimodal, no jargão especializado – é de que serviria para chamar a atenção. “Os sauins percebem mais facilmente a vocalização quando sentem o cheiro”, propõe a bióloga. Segundo ela, esse tipo de estudo não tinha sido feito em macacos de vida livre na natureza, pelas dificuldades de observação. Um exemplo semelhante seria a : quando machos fazem um gesto com os dedos em acréscimo à comunicação vocal, é um forte chamado à briga.

O primatólogo Júlio César Bicca-Marques, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), não se lembra de estudos semelhantes sobre comunicação na natureza. Esse tipo de comportamento não é seu foco de pesquisa, mas seu grupo tem estudado outros aspectos de macacos em contexto urbano, e alguns anos atrás ele fez uma revisão para um verbete no livro The international encyclopedia of primatology (John Wiley and Sons, 2017). “Nem todos os primatas se adaptam bem a meios urbanos”, avalia, “por isso não é um tema facilmente abordável em alguns lugares”. Um dos efeitos da urbanização relatados no levantamento é os macacos perderem informações cruciais sobre seu meio natural, como macacos indianos (Macaca radiata), que vivem na cidade e não reconhecem os sons emitidos por predadores.

Bugios sulinos

Mas o efeito mais marcante da adaptação às cidades é a mudança na disponibilidade alimentar, que pode causar mudanças no padrão de movimentação dos animais que deixam de buscar suas fontes habituais de nutrição. A interação com seres humanos por alimento pode fazer com que algumas espécies de macacos sejam consideradas pragas em cidades. Essa interação também pode ameaçar a saúde dos animais. Em São Francisco de Assis, uma cidade pequena do interior gaúcho, a estudante de mestrado Isadora Alves de Lima, da PUC-RS, observou recentemente bugios (Alouatta caraya) recebendo restos de churrasco de funcionários e clientes de restaurantes, conforme artigo publicado em outubro na revista Primates. É surpreendente porque essa espécie sabidamente se alimenta de folhas e frutos. “Já havíamos observado bugios comendo ovos e recebido relatos do consumo de passarinhos, mas nada próximo de carne assada”, relata o primatólogo. Seu grupo colheu amostras de fezes para investigar como essa mudança de dieta afeta a microbiota – bactérias do trato intestinal, responsáveis por parte da digestão. Um objetivo futuro é avaliar os efeitos dessa dieta alterada na saúde dos animais.

Sobre vocalizações, nesse tipo de ambiente Bicca-Marques relata ter ouvido menos roncos, os chamados dos bugios que atingem extensas distâncias. “Quando um grupo único vive em uma praça, não faz tanto sentido gastar energia com vocalizações territoriais”, interpreta.

Na revisão para a enciclopédia de primatologia, ele destacou o potencial dessas populações urbanas de proporcionar experiências de observação de macacos como forma de promover a conectividade das pessoas com a natureza e o respeito pela vida selvagem. É o caso do sagui-de-tufos-pretos (Callithrix penicillata), que virou símbolo ecológico da cidade de Belo Horizonte (Minas Gerais) em 1992, e do próprio sauim-de-coleira, considerado mascote da cidade de Manaus desde 2015. “Apesar de todos os esforços dos cientistas e conservacionistas, pouco (se algo) mudou em prol do sauim-de-coleira desde então”, lamenta no texto.

Leia também:





Artigos científicos
SOBROZA, T. V. et al. Ethology Ecology & Evolution. On-line. 20 set. 2023.
BICCA-MARQUES, J. C. . The international encyclopedia of primatology (Augustín Fuentes, org.). John Wiley and Sons. 2017.
LIMA, I. A. e BICCA-MARQUES, J. C. . Primates. On-line. 20 out. 2023.

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