Estratégias não medicamentosas ajudaram a reduzir impacto da Covid-19
Texto: Felipe Floresti/Revista Pesquisa Fapesp
O uso de máscaras, a imposição de distanciamento social e outras três medidas não farmacológicas foram eficientes para conter a transmissão do novo coronavírus durante a pandemia de Covid-19 e, assim, evitar o colapso generalizado dos sistemas de saúde de diferentes países enquanto não surgiam as vacinas. Essas estratégias se mostraram úteis especialmente quando usadas em conjunto e nas fases mais iniciais, indicam as evidências científicas apresentadas em uma série de estudos de revisão publicados em agosto na revista Philosophical Transactions of the Royal Society A.
“Há evidências suficientes para concluir que a implementação precoce e rigorosa de pacotes de intervenções não farmacêuticas complementares foi inequivocamente efetiva em limitar as infecções por Sars-CoV-2”, afirmou em comunicado à imprensa o médico Mark Walport, secretário de Relações Exteriores da Royal Society, a academia britânica de ciências que edita a Philosophical Transactions, e líder do grupo de especialistas que realizaram os estudos de revisão. “Isso não significa que todas as intervenções foram eficazes em todos os cenários ou o tempo todo, mas aprender as lições de toda a pesquisa gerada nessa pandemia será fundamental para nos prepararmos para a próxima”, concluiu.
A partir de março de 2020, bem antes de as vacinas estarem disponíveis, países ao redor do mundo adotaram conjuntos de medidas – com diferentes formatações, abrangências e intensidades – que alteraram o funcionamento da sociedade e o convívio entre as pessoas, representando a maior interferência no cotidiano da população global desde a Segunda Guerra Mundial. Com base na experiência de pandemias anteriores, como a da Gripe Espanhola de 1918, especialistas e autoridades da saúde orientaram os governos a recomendar ações como tornar obrigatório o uso de máscaras em certas situações, impor o distanciamento social e até lockdowns, antes mesmo que fosse possível conhecer em detalhes o comportamento do Sars-CoV-2 ou de ter certeza de que funcionariam contra ele. Algumas dessas medidas, em especial as duas últimas, foram bastante impopulares, por causarem um importante impacto econômico, além de social, em especial nas populações mais vulneráveis. Foram ações consideradas necessárias diante de um vírus que se dissemina muito rapidamente e contra o qual não se tinha imunidade.
Passada a fase crítica da pandemia, Walport reuniu seis grupos de especialistas e pediu que cada equipe revisasse os mais relevantes estudos que avaliaram cada uma das cinco principais medidas não farmacológicas adotadas para conter o vírus: uso de máscaras; distanciamento social ou imposição de lockdown; testagem, rastreio e isolamento; controle de fronteiras internacionais; e controle ambiental. Também foi analisado o impacto de ações de comunicação social sobre a aceitação dessas medidas.
Máscaras
O grupo liderado pelo epidemiologista Christopher Dye, da Universidade de Oxford, no Reino Unido, analisou 75 estudos que mediram em diferentes países se o uso de máscaras poderia reduzir a transmissão do Sars-CoV-2. Trinta e cinco foram realizados nas comunidades e 40 conduzidos em unidades de saúde. Quase todos eram estudos observacionais, nos quais os realizadores acompanharam, sem interferir, os efeitos do uso versus os do não uso de máscaras. Dos 45 trabalhos que avaliaram se o aparato de proteção facial reduzia o número de infectados, 39 (87%) identificaram um efeito positivo – alguns registraram uma diminuição de pouco mais de 10% no total de indivíduos com o vírus ou com sinais de Covid-19. De 18 estudos que analisaram o impacto do uso obrigatório de máscaras, 16 concluíram que a medida reduzia a taxa de infecção. “De modo geral, o corpo de publicações analisadas demonstra que a máscara funciona”, afirma o epidemiologista Expedito Luna, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), que avaliou o dossiê a pedido de Pesquisa FAPESP.
Sete estudos indicaram que as máscaras do tipo N95 protegiam mais do que as cirúrgicas, embora outros cinco trabalhos não tenham encontrado diferença. “No início da pandemia, quando não havia máscaras disponíveis para todo mundo, o uso de máscaras de pano era melhor do que nada, mas o relatório deixa claro que aquelas de melhor qualidade reduzem mais a transmissão”, conta o epidemiologista Pedro Hallal, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), que também analisou os estudos da Philosophical Transactions.
Entre todas as intervenções avaliadas, o distanciamento social foi a que se mostrou mais eficaz. Ordens para ficar em casa, manter uma distância mínima de outras pessoas e restringir o número de participantes de reuniões foram repetidamente associadas a uma redução importante na transmissão do Sars-CoV-2.A epidemiologista Christi Donelly, do Imperial College London, no Reino Unido, e sua equipe revisaram 338 estudos sobre nove medidas de distanciamento social. Quase metade dos trabalhos (151) avaliou o impacto da imposição de ficar em casa, que, em alguns casos, incluía ações mais restritivas, como lockdowns. Deles, 119 encontraram redução significativa no número de casos e na mortalidade. A queda média na transmissão do vírus foi de 50%, embora os valores tenham variado consideravelmente (de 6% a 81%) entre os estudos, que usaram desenhos diferentes, analisaram populações distintas nas quais foram adotadas formas diversas de restrição.
“Manter as pessoas em casa reduz bastante, e pode praticamente zerar, a transmissão do vírus por um período”, explica Hallal. “No Brasil, não funcionou porque se quis dar um ‘jeitinho’ no distanciamento para não atrapalhar as atividades econômicas.” Na opinião do epidemiologista Eliseu Waldman, da Faculdade de Saúde Pública da USP, o distanciamento social deixou mais claras as diferenças sociais no Brasil. “Boa parte da população não pôde pôr a medida em prática porque precisava sair de casa para conseguir o que comer a cada dia”, afirma. A equipe da epidemiologista Elizabeth Fearon, da University College London, no Reino Unido, olhou 1.181 estudos e, entre eles, encontrou apenas 25 trabalhos que mediram empiricamente e em nível populacional a estratégia de testar as pessoas suspeitas de estarem infectadas, rastrear os indivíduos que tiveram contato com elas e isolar aqueles em que a infecção foi confirmada. No entanto, devido à diversidade de abordagens adotadas, não foi possível comparar os dados seguindo uma única métrica de impacto. “Em geral, esses estudos mostraram que a testagem e/ou o rastreio de contatos estavam associados a reduções na transmissão”, escreveram os pesquisadores. Apesar de a maioria dos países ter introduzido restrições de viagem durante a pandemia, a especialista em políticas de saúde Karen Grépin, da Universidade de Hong Kong, e seus colaboradores encontraram poucos estudos examinando a eficácia dessas medidas. Segundo os pesquisadores, estudos de casos nacionais, como o da Nova Zelândia, mostraram que políticas abrangentes de controle de fronteiras podem reduzir, mas não eliminar, o número de viajantes infectados. As restrições de viagem de países específicos tiveram um efeito moderado na transmissão, mas rapidamente se tornaram menos eficazes à medida que o número de casos aumentou. Já a quarentena na fronteira de entrada foi considerada mais eficaz para reduzir a transmissão do vírus. A equipe coordenada pelo engenheiro Shaun Fitzgerald, da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, buscou na literatura científica evidências de que medidas de controle ambiental – como melhorar a ventilação dos locais e realizar a filtragem do ar ou a desinfecção de superfícies, entre outras – poderiam ajudar a diminuir a transmissão do vírus. De 14 mil artigos identificados, apenas 19 haviam sido revisados por pares. Segundo os autores da revisão, esses trabalhos sugerem que essas medidas são capazes de reduzir a transmissão do Sars-CoV-2 se aplicadas a ambientes fechados. A revisão coordenada pelo sociólogo Simon Williams, da Universidade de Swansea, no País de Gales, avaliou a eficácia das estratégias de comunicação para fazer as pessoas aderirem às medidas não farmacológicas de controle da Covid-19. Foram analisados 13 trabalhos, que levaram em conta exclusivamente o contexto do Reino Unido. A confiança – no governo, nos pesquisadores e nas autoridades da saúde – foi o fator que mais impactou a eficácia da comunicação, sendo mencionado em 10 dos 13 estudos. A baixa confiança no governo levou a uma menor adesão ou a uma maior crença em teorias conspiratórias. Igualmente importantes também foram a clareza e a consistência da mensagem. “Mensagens ambíguas” geraram confusão e, em alguns casos, falta de adesão, afirmaram os pesquisadores. Da leitura do dossiê, fica claro que ainda são necessários estudos mais específicos para mensurar melhor o efeito de cada medida. Nos trabalhos analisados, muitas haviam sido adotadas simultaneamente, o que dificultou a separação do efeito de cada uma. Luna, da USP, lembra ainda que não foram avaliadas as consequências sociais e econômicas dessas medidas. Apesar das limitações, Hallal afirma que o relatório organizado por Walport é importante por acrescentar evidências empíricas ao que já se sabia em teoria ou havia sido demonstrado pontualmente por estudos isolados. “Essas revisões mostraram serem efetivas várias medidas que recomendamos mil vezes durante a pandemia. Muitas mortes poderiam ter sido evitadas se essas ações tivessem sido tomadas no Brasil”, conclui o epidemiologista da UFPel.Vacina da UFMG avança para a segunda fase de testes
Composto deve ser administrado a 360 pessoas com idades entre 18 e 65 anos
No final de agosto, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou o início da segunda fase de testes em seres humanos da SpiNTec, o único composto candidato a vacina contra a Covid-19 desenvolvido integralmente no Brasil. Essa é a penúltima etapa de ensaios clínicos antes da liberação para a comercialização. A SpiNTec é um dos três candidatos a imunizante contra o novo coronavírus desenvolvido com a participação de brasileiros a chegar à fase de testes em pessoas (ver Pesquisa FAPESP nº 321). Ela foi criada pela equipe do Centro de Tecnologia de Vacinas (CTVacinas) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Minas Gerais e recebeu investimentos de instituições federais, da Prefeitura de Belo Horizonte e da bancada mineira na Câmara dos Deputados.Na segunda fase de testes, a formulação será administrada a cerca de 360 voluntários com idades entre 18 e 65 anos, saudáveis ou com doenças crônicas controladas, que receberam anteriormente doses de CoronaVac ou do imunizante da AstraZeneca e o reforço da vacina da Pfizer/BioNTech ou da AstraZeneca. “Esse é um importante passo para a obtenção do registro”, disse o imunologista Ricardo Gazzinelli, coordenador do CTVacinas e pesquisador da Fiocruz em Minas Gerais, à Agência FAPESP. Os participantes serão acompanhados por um ano.
O objetivo dessa segunda fase é continuar avaliando a segurança da formulação e identificar os efeitos indesejáveis que possam surgir, além de avaliar marcadores imunológicos de eficácia. Informações iniciais do ensaio clínico de fase 1, apresentadas em junho, indicaram que a SpiNTec é segura (não causa problemas graves de saúde) e capaz de induzir a resposta imunológica. Além de estimular a produção de anticorpos contra a proteína da espícula do Sars-CoV-2, como a maioria das vacinas disponíveis, a nova formulação potencializa a ativação dos linfócitos T, células que combatem as células infectadas pelo vírus. Essa dupla ação, em princípio, pode torná-la eficaz também contra novas variantes. Se tudo correr bem, a última etapa de testes deve ocorrer no próximo ano. “Já temos recursos da Finep aprovados para a fase 3, que serão liberados mediante o sucesso da atual fase do estudo”, contou Gazzinelli.Artigos científicos
WALPORT, M. . Philosophical Transactions of the Royal Society A. 24 ago. 2023.
BOULOS, L. et al. . Philosophical Transactions of the Royal Society A. 24 ago. 2023.
MURPHY, C. et al. . Philosophical Transactions of the Royal Society A. 24 ago. 2023.
LITTLECOTT, H. et al. . Philosophical Transactions of the Royal Society A. 24 ago. 2023.
GRÉPIN, K. A. et al. . Philosophical Transactions of the Royal Society A. 24 ago. 2023.
MADHUSUDANAN, A. et al. . Philosophical Transactions of the Royal Society A. 24 ago. 2023.
WILLIAMS, S. N. et al. . Philosophical Transactions of the Royal Society A. 24 ago. 2023.