Engenharia agrícola: uma forma vibrante de controlar percevejos
Texto: Felipe Floresti / Carlos Fioravanti /
Uma das mais recentes inovações para combater uma importante praga da agricultura – o percevejo-marrom-da-soja (Euschistus heros) – lembra a placa de circuito impresso de um computador, com chips e dispositivos redondos e quadrados que só os conhecedores de eletrônica sabem nomear. O aparelho transmite a superfícies sólidas, como plantas de soja e armadilhas de monitoramento de insetos, vibrações de baixa frequência, de 60 a 130 hertz (Hz), as mesmas que os percevejos usam ao se comunicar. Em provas no campo, o protótipo elaborado na Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia (Cenargen), do Distrito Federal, e na Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat) mostrou que pode atrair os insetos.
No início dos anos 1990, o biólogo Miguel Borges, também do Cenargen, isolou e sintetizou o metil 2,6,10 trimetil tridecanoato, princípio ativo do feromônio de E. heros. Quando aplicados em armadilhas instaladas nas lavouras, esses feromônios sintéticos podem ser úteis para a captura, identificação, monitoramento ou controle populacional dos insetos. A substância os confunde e engana: quando identificam o cheiro do macho, as fêmeas são atraídas e caem na armadilha ().
“O feromônio age a longa distância, em um raio de cerca de 100 metros [m], enquanto em distâncias menores a comunicação se dá principalmente por vibrações”, observa Laumann. Produzidas pelo movimento de estruturas rígidas do abdômen chamadas escleritos e transmitidas pelas patas, as vibrações podem viajar 2 m pelas plantas até serem captadas por receptores das patas de outros percevejos.Além do percevejo-marrom-da-soja, a equipe do Cenargen estudou outras espécies, entre elas o percevejo-pequeno-verde-da-soja (Piezodorus guildinii), o percevejo-do-trigo (Thyanta perditor) e o percevejo-verde (Chinavia impicticornis). O grupo verificou que cada espécie tem um repertório de sinais característicos, como detalhado em um artigo de 2005 na , feito em colaboração com o biólogo Andrej Čokl, do Instituto Nacional de Biologia, em Liubliana, a capital da Eslovênia.
Outros estudos foram feitos pelos grupos brasileiro e esloveno. Em um deles, os cientistas examinaram as vibrações de E. heros e concluíram que elas apresentam semelhanças com as de percevejos europeus, também considerados uma ameaça à lavoura. Todos vibram em frequências entre 60 e 130 Hz, com uma média de 100 Hz, mas se diferenciam pela duração e forma com que os sinais se repetem.
Em outro trabalho conjunto, cujos resultados foram publicados em 2018 na , os pesquisadores demonstraram como os sinais artificiais poderiam interferir no comportamento reprodutivo de E. heros. Em um experimento de longo prazo, no qual os insetos foram submetidos em laboratório a vibrações por 24 horas, a frequência de acasalamento foi reduzida em 24,7% quando comparada com o grupo de controle. “Fêmeas expostas ao ruído de fundo reduziram a fecundidade e a fertilidade”, anotaram os autores do estudo.
Resistência a inseticidas
Em 2012, após assistir a uma palestra da equipe do Cenargen que abordou esse tema, um estudante de mestrado da Unemat resolveu dedicar-se ao projeto de um dispositivo que reproduzisse artificialmente os sinais emitidos pelos insetos. A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Mato Grosso (Fapemat) aprovou a proposta, mas depois o rapaz desistiu do curso. “Fiquei com um projeto aprovado em meu nome, como pesquisador responsável, e a missão de desenvolver um aparelho eletromecânico capaz de reproduzir os sinais vibracionais do percevejo, de modo que o inseto o entendesse como um sinal natural”, conta o engenheiro agrícola Tadeu Miranda de Queiroz, da Unemat, que havia se prontificado a orientar e, por fim, assumiu o trabalho. “Coube à equipe da Unemat desenvolver softwares e hardwares que, juntos, fossem capazes de gravar, armazenar e reproduzir os sinais vibracionais dos insetos”, recorda-se Queiroz, que tem experiência no desenvolvimento de sistemas automáticos para a agricultura. “Parte importante do desafio foi achar um meio físico [eletromecânico] de geração dos sinais vibracionais a partir dos arquivos originais da coletânea de cantos de percevejos do Cenargen”, destaca o pesquisador da Unemat. O conjunto formado por software, hardware e dispositivo eletromecânico foi submetido à solicitação de patente no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). “O aparelho, compacto, acessível e portátil, reproduz a frequência, amplitude e potência adequada das vibrações. É um primeiro protótipo, com um leque variado de aplicações no campo, mas que ainda demanda algum desenvolvimento”, reconhece Laumann. A Embrapa busca no momento um parceiro para finalizar o aparelho e levá-la ao mercado. “Essas tecnologias têm potencial de se tornarem muito importantes para o controle e manejo dos percevejos e valem o investimento”, comenta o engenheiro-agrônomo Raul Guedes, da Universidade Federal de Viçosa (UFV), que não participou das pesquisas. “A carga de agrotóxicos na soja para o controle de percevejos é alta, com gasto elevado para os produtores e riscos para o ambiente e a saúde humana. Além disso, muitas espécies de percevejos estão apresentando resistência aos inseticidas.” O caminho da invenção até o campo, porém, pode ser longo. Em 2016, o feromônio do percevejo foi patenteado e licenciado pela Embrapa para a Isca Tecnologias, uma empresa de bioinseticidas, visando o desenvolvimento de uma armadilha. O presidente da Isca Latam, Leandro Mafra, informa que o desenvolvimento do produto já foi concluído e estão trabalhando as questões legais, regulatórias, industriais e comerciais para viabilizar o lançamento. Não há previsão de quando o processo será concluído.Soluções pouco convencionais podem ajudar a livrar a lavoura de ameaçasEnquanto as armadilhas com feromônios e os dispositivos eletrônicos não chegam, os agricultores que quiserem reduzir o uso de inseticidas podem contar com alternativas mais simples para monitorar e, eventualmente, controlar a presença de percevejos em suas plantações de soja. Uma delas, desenvolvida pela Embrapa Soja, consiste no uso de armadilhas preparadas com uma garrafa plástica preenchida com uma solução de urina bovina e sal de cozinha (cloreto de sódio). A proporção recomendada é de 3 litros (L) de urina e 500 gramas de sal dissolvidos em 7 L de água – a urina é coletada diretamente das vacas, que são estimuladas por uma massagem perivulvar. As armadilhas devem ser fixadas em estacas e colocadas na borda ou no interior da lavoura de soja, a cada 30 a 50 metros. Atraídos pelo cheiro, os insetos caem no líquido e morrem.Na Austrália, o fazendeiro Brendon Hoyle, para manter seu cultivo de morangos sem inseticidas e sem moscas-da-fruta, usou um aspirador de insetos de porte industrial, rebocado por um trator, similar ao que havia visto nos Estados Unidos. Sua versão usa três grandes aspiradores, instalados dentro de barris, que passam por cima dos canteiros de morangos e sugam os insetos aderidos às folhas, sem danificar a planta. As moscas-da-fruta aspiradas são esmagadas em uma grade que cobre a parte superior de cada barril onde ficam os aspiradores. Em dois anos, a quantidade de moscas-da-fruta caiu entre 75%e 90%. Em 2022, por sua invenção,Hoyle ganhou o prêmio de Agricultor do Ano pela Indústria Orgânica Australiana.
A reportagem acima foi publicada com o título “Como enganar percevejos” na edição impressa de agosto de 2024.
Artigos científicos
MORAES, M. C. B. et al. . Physiological Entomology. v. 30, p. 175-88. mai. 2005.
LAUMANN, R. A. et al. . Journal of Pest Science. v. 91, p. 995-1004. 20 fev. 2018.