Um crânio quase intacto descoberto na Etiópia é a primeiro a revelar as características faciais de uma espécie importante ligada à evolução inicial dos hominídeos. Ao mesmo tempo, o fóssil de 3,8 milhões de anos complicou ainda mais a nossa compreensão do Australopithecus – o gênero que provavelmente deu origem aos seres humanos.
Antes do surgimento do Homo havia o Australopithecus, um gênero que viveu na África há cerca de 4 milhões a 2 milhões de anos. Os primeiros fósseis de Australopithecus foram descobertos na África do Sul há 95 anos, e o gênero é agora conhecido por englobar pelo menos cinco espécies: anamensis, afarensis (conhecido pelo ), africanus, sediba, e garhi.
É muito provável que uma dessas espécies – ainda não sabemos qual – originou o gênero Homo ao qual nós pertencemos. Infelizmente, o histórico de fósseis desses hominídeos ancestrais é excepcionalmente escasso, resultando em uma série de ambiguidades sobre essa questão.
Dois novos estudos publicados na quarta-feira (28) na Nature descrevem a descoberta de um crânio quase completo de A. anamensis, representando uma contribuição importante para o histórico de fósseis e para o estudo das origens dos seres humanos.
Anteriormente, essa espécie era conhecida apenas por meio de fragmentos de dentes e mandíbulas. Portanto, esse novo crânio, encontrado no sítio arqueológico Woranso-Mille na região Afar da Etiópia, representa um grande passo para nossa compreensão desse australopitecino inicial.O crânio, além de revelar características faciais, está jogando luz sobre a origem do Australopithecus e as espécies que seguiram. Um fato importante é que há uma idade estimada de 3,8 milhões de anos, a espécie A. anamensis provavelmente conviveu com a A. afarensis por cerca de 100 mil anos, de acordo com o novo estudo.
Essa sobreposição inesperada significa que algumas espécies do gênero Australopithecus não evoluíram linearmente, com uma espécie acompanhando a outra de forma bem próxima e ordenada, um processo conhecido como anagênese. Em vez disso, essa nova descoberta indica um cenário diferente, em que múltiplas espécies coexistiram no mesmo período, em um processo chamado cladogênese. Evolução, como já sabemos, é muitas vezes algo confuso e complicado.
No dos dois estudos publicados da Nature, o paleoantropólogo Yohannes Haile-Selassie, do Museu de História Natural de Cleveland, e seus colegas apresentaram sua análise do fóssil. Batizado de MRD, o crânio foi encontrado três anos atrás na Etiópia, cerca de 55 quilômetros ao norte de Hadar, onde o famoso fóssil Lucy foi descoberto em 1947.
Análises dos dentes e mandíbula do fóssil permitiram que os pesquisadores classificassem a espécie como A. anamensis. O indivíduo era provavelmente um homem adulto de idade avançada, como evidenciado pelos seus dentes desgastados. Estudos do crânio revelaram algumas características surpreendentes.
“O MRD tem uma mistura de características faciais e cranianas primitivas e derivadas que eu não esperava encontrar em nenhum indivíduo”, disse Haile-Selassie em um comunicado à imprensa.Isso incluía uma face robusta, alongada e saliente. Durante uma coletiva de imprensa na terça-feira (27), a coautora do estudo Stephanie Melillo, do Max Planck Institute for Evolutionary Anthropology, disse que essas características eram o “início de uma tendência” para o Australopithecus, um gênero com “rostos grandes”, adequados para dietas à base de alimentos duros e difíceis de mastigar.
Consequentemente, esse fóssil poderia jogar uma nova luz sobre a origem do Australopithecus e seus ancestrais imediatos, incluindo o Ardipithecus e o Sahelanthropus. Ao mesmo tempo, a espécie A. anamensis também tinha algumas características modernas, como uma redução no tamanho dos caninos e um grande crânio em comparação com o A. afarensis — as espécies que supostamente vieram depois do A. anamensis.
O segundo artigo da Nature, liderado por Beverly Saylor, professora de estratigrafia e sedimentologia da Case Western Reserve University, datou o fóssil e estudou o ambiente em que o MRD viveu e morreu. A datação por isótopos de argônio foi usada para analisar minerais nas camadas vulcânicas e ao redor dos estratos em que o fóssil foi encontrado.
Durante a coletiva de imprensa de terça-feira, Melillo descreveu a datação do fóssil como “bastante segura”, com Saylor acrescentando que se enquadrava em “uma restrição bem rígida”. De fato, a idade do fóssil foi estimada entre 3,804 milhões e 3,777 milhões de anos — um intervalo de apenas 27 mil anos. Saylor e seus colegas também analisaram outros remanescentes biológicos encontrados nas proximidades, incluindo grãos de pólen e os traços químicos de plantas e algas. Isso permitiu que os pesquisadores reconstruíssem a antiga paisagem africana dentro da qual esse hominídeo vivia.O fóssil MRD foi encontrado perto de um antigo lago e delta de um rio; o lago às vezes era salgado e a bacia hidrográfica estava frequentemente seca. Algumas áreas florestais existiam na costa do delta e do rio que alimentava o lago, mas era basicamente uma região seca. Os pesquisadores não têm certeza de quais alimentos sustentaram o A. anamensis neste local. Eles dizem que uma análise isotópica dos dentes da MRD poderia fornecer algumas pistas.
Antes dessa descoberta, fósseis de A. anamensis sugeriam que essa espécie vivia na África entre 4,2 milhões e 3,9 milhões de anos atrás. Agora, os cientistas podem adicionar mais 100 mil anos a essa estimativa — uma revisão com algumas implicações evolutivas importantes.
De acordo com o artigo de Haile-Selassie, a descoberta do MRD ajudou a confirmar a identidade de outro fóssil – o descoberto em 1981 na região do Médio Awash, na Etiópia. A análise comparativa desses dois fósseis “confirma ainda mais que o fragmento frontal de 3,9 milhões de anos [de Belohdelie] (…) provavelmente pertence ao A. afarensis“, escreveram os autores no novo estudo, acrescentando que “a datação segura” desses dois fósseis indica que “A. afarensis e A. anamensis se sobrepuseram no Triângulo de Afar por pelo menos 100 mil anos”.
Como observado, essa sobreposição desafia o modelo linear da evolução australopitecina.“Tradicionalmente, pensamos na evolução como ocorrendo de maneira linear”, disse Haile-Selassie na coletiva de imprensa. “Mas duas espécies relacionadas poderiam viver ao mesmo tempo?” Haile-Selassie disse que animais intimamente relacionados costumam viver ao mesmo tempo, e que a mesma coisa provavelmente aconteceu com os primeiros hominídeos. Os pesquisadores não sabem se A. afarensis e A. anamensis interagiram ou cruzaram, mas continua sendo uma possibilidade distinta.
Mais importante, disse Haile-Selassie, é o reconhecimento de que grupos de hominídeos se separaram, resultando em diferentes experimentos evolutivos e, consequentemente, no surgimento de novas espécies. Tal processo, conhecido como cladogênese, não requer a ausência de espécies relacionadas.“Eu fico em cima do muro em relação à alegação feita pelos autores de que o modelo de uma única linhagem de evolução de A. anamensis para A. afarensis está sendo desafiado pelo novo crânio”, disse Alemseged.
“O argumento deles depende de um osso frontal fragmentário descoberto na década de 1980 no local de Médio Awash e de como ele difere do novo crânio e de como é mais parecido com A. afarensis. Dada a natureza fragmentária do espécime do Médio Awash, eu evitaria conclusões abrangentes sobre o modo de evolução. Isso, no entanto, não diminuiu a importância do crânio MRD”, acrescentou.
Infelizmente, o fóssil MRD não nos diz qual versão do Australopithecus acabou por dar origem ao Homo. Na verdade, isso complica ainda mais nossa compreensão da evolução inicial dos hominídeos. Como Haile-Selassie apontou durante a coletiva de imprensa, não podemos mais dizer que A. afarensis é a espécie mais próxima do Homo em termos de nossa linhagem evolutiva, pois várias possibilidades estão surgindo.
Mas complicações são algo bom. Isso significa que podemos descartar interpretações excessivamente simplistas e nos aproximarmos da verdade.