Na última semana, o ministro Ricardo Lewandowski, do STF, suspendeu parcialmente um decreto editado pelo presidente Jair Bolsonaro que alterava regras de proteção de cavernas. O , ampliava a exploração desses ambientes e permitia a intervenção comercial nas formações geológicas.
Os trechos suspensos diziam respeito a construção de empreendimentos considerados de utilidade pública nessas áreas e também quanto à possibilidade de destruição de cavernas classificadas como “de relevância máxima”. À primeira vista, pode parecer que tudo acabou bem –afinal, a pior parte foi retirada do decreto. Mas é claro que a história não é essa.
Em emitida no dia 24 de janeiro pela Sociedade Brasileira de Espeleologia (SBE), os pesquisadores alertaram para as “inúmeras inconsistências e armadilhas que favorecem a destruição de cavernas em todo o território nacional” que permaneceram no decreto.
Ricardo Galeno Pereira, pesquisador do Instituto de Geociências da Universidade Federal da Bahia (IGeo/UFBA), cita uma permissão em específico. Ela prevê que as análises do grau de relevância das cavernas possam ser revistas a qualquer momento por influência dos ministérios de Minas e Energia e da Infraestrutura. Ou seja, setores do governo ligados a obras de desenvolvimento poderiam influenciar que caverna podem ser exploradas.
“Há aí um claro e nítido conflito de interesses, já que a análise do grau de relevância das cavernas, bem como a sua conservação, são matérias da competência do Ministério do Meio Ambiente, que conta com equipe técnica capacitada para essa tarefa. Na prática, ao incluir esses outros ministérios, é como ‘entregar o galinheiro aos cuidados da raposa’”, explicou, em entrevista ao Gizmodo Brasil.
Histórico
O primeiro decreto que regulamentava a proteção de cavernas foi emitido em outubro de 1990. De acordo com Galeno, ele tinha um viés preservacionista, mas ainda abria brechas para a exploração. Isso foi revisto com o decreto 6.640, de 2008, que estabeleceu graus de relevância para as cavernas.
“Agora, com o Decreto 10.935m qualquer cavidade pode ser destruída e os critérios de classificação foram reduzidos, bem como as compensações ficaram mais flexíveis e menos contundentes”, explica o pesquisador.
O decreto de 2008 contava com 11 atributos que classificavam uma cavidade como de máxima relevância, a qual não poderia ser tocada. O documento atual exclui quatro deles: morfologia [composição] única; habitat essencial para preservação de populações geneticamente viáveis de espécies de troglóbios [animais típicos de cavernas] endêmicos ou relictos [encontrados apenas em certos locais]; interações ecológicas únicas; e cavidade testemunho [usadas para pesquisas geológicas].
Além disso, o novo documento permite que seja feita a reclassificação de cavernas — mas não explica exatamente de que forma isso pode ser feito. Lucas Padoan de Sá Godinho, doutor em Geoquímica e Geotectônica pelo Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (IGc-USP), explica que métodos nocivos ao ambiente podem ser usados nessa reclassificação.
“Uma forma de tentar fazer isso seria aplicando um segundo estudo com métodos menos precisos ou menos eficazes, que vão tentar dizer que aquela caverna não é tão importante”, disse o pesquisador. Dessa forma, as pessoas irão utilizar relatórios enviesados e usá-los como desculpa para realizar a mudança de status e explorar o local.
Riscos
Assim como uma praia ou uma floresta, a caverna também é um tipo de ambiente em que vivem organismos únicos. Destruí-la leva também à aniquilação de todo um ecossistema.
No decreto polêmico, foi determinado que cavernas que contenham populações de “dezenas de milhares” de morcegos não podem ser destruídas. Os pesquisadores apontam para o fato de que não foi cravado um número, o que abre brechas para que populações menores do animal sejam dizimadas — afetando a polinização de plantas e controle de pragas, por exemplo.
Chama atenção ainda o fato de que muitas cavernas abrigam aquíferos. De acordo com Lucas Padoan, os mananciais de águas subterrâneas abastecem cerca de um quarto da população mundial. “Então quando você destrói uma caverna, quando você polui a água dessa caverna, está colocando em risco o abastecimento parcial ou total de vilas e cidades inteiras”, explicou.
Há ainda o impacto direto sobre a pesquisa. Fernanda Quaglio, professora adjunta do Departamento de Ecologia e Biologia Evolutiva (DEBE) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), explica que o estudo de fósseis encontrados em caverna, por exemplo, é primordial “não apenas para o estudo da história natural de linhagens antigas, mas também para o entendimento da vegetação, paisagens locais, condições da água e até do ar no passado do planeta”.
Quaglio explica que fósseis da Mastofauna, por exemplo, são encontrados com maior frequência dentro de cavernas, muitas vezes preservados em lagos subterrâneos. Algumas vezes, são necessárias décadas para encontrá-los, extraí-los e estudá-los detalhadamente sem afetar a integridade da caverna.
“A perda de uma caverna e todo o seu conteúdo paleontológico representa uma perda irreversível para a ciência e o conhecimento sobre a pré-história do Brasil”, completou.
Na Justiça
Em nota, a SBE destacou que não foi convidada para discutir ou opinar sobre o decreto, o que mostra que seu desenvolvimento foi feito fora do debate público. Como explica Fernanda Quaglio, “só isso já tornaria o decreto inconstitucional”.
A pesquisadora diz que, atualmente, há sete ações judiciais e legislativas contra o decreto nº 10.935/2022, além de diversas notas de associações ambientais e científicas.
Apesar da cientista acreditar que o decreto será derrubado, o episódio mostra como o Brasil está indo na contramão do debate ambiental internacional. Diante da crise causada pelas mudanças climáticas, muitos países estão olhando para seu patrimônio natural e buscando maneiras de diminuir o impacto.
“De forma geral, eu entendo que estamos com chances de vencer a batalha, mas a guerra contra a destruição das nossas cavernas vai continuar”, completou a pesquisadora.