Nossos corpos não estão prontos para a realidade virtual

O que é familiar em uma tela de cinema se torna uma experiência nauseante quando se está sentado a centímetros de distância e vira a sua cabeça rapidamente.
A melodiosa voz de Michael Fassbender está falando absurdos sobre um grupo de assassinos. Ao redor de mim, um mar de acontecimentos está se desdobrando por cima de um fundo meio cartunesco. Estou na nova experiência virtual de Assassin’s Creed, e graças a uma mistura de gráficos de baixa resolução e pessoas em alta resolução, me sinto dentro de um jogo do Mortal Kombat de 1993.

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Eu não tenho nenhum controle. A câmera, junto comigo, se movimenta rapidamente por um corredor medieval. Nós deslizamos até parar na beirada de uma torre. Eu não tenho um corpo, eu flutuo sobre o chão como um espectro, então não tenho como compreender o quão perto da beira está o meu corpo virtual. Então a câmera se movimenta para frente enquanto a minha forma fantasmagórica é jogada da torre. Estou sentada, mas meu estômago vai até a garganta. No momento, a lasanha que comi no almoço está pronta para encontrar novamente a minha boca. A tela fica preta. A experiência terminou. Eu arranco o headset e engulo uma grande quantidade de ar. O mundo para de girar o bastante para eu encontrar os olhos de um dos criadores. Ele está sorrindo, empolgado com o lançamento de sua experiência em Assassin’s Creed. Eu estou enjoada e tento ser educada.

Essa é uma experiência em realidade virtual cuidadosamente planejada. Foi filmada nos mesmos lugares que o filme de grande orçamento, e pretende deixar as pessoas comuns ficarem empolgadas com a realidade virtual, uma tarefa surpreendemente difícil. Essa experiência foi, de várias formas, o melhor que a realidade virtual tem a oferecer. E enquanto a náusea tenta se acalmar no meu estômago, uma coisa fica dolorosamente clara. Nossos corpos não estão prontos para isso.

O mundo físico e a localização

A maneira que você experimenta o seu lugar no mundo físico é determinada pelos seus olhos e pelo aparelho vestibular, que é basicamente composto de uma série de estruturas ósseas complexas na parte interna do seu ouvido. Girar rapidamente em um lugar ou se levantar rápido demais pode bagunçar sua delicada disposição. Dano ao aparelho causa vertigem. Ele é muito sensível e não gosta de ser enganado, no entanto é exatamente isso que a realidade virtual faz.

É por isso que meus anfitriões me fazem sentar antes de colocar o headset da experiência em Assassin’s Creed. A experiência imita uma demonstração de realidade virtual extremamente popular: a montanha russa. É um jeito de mostrar o quão imersivo o seu aparelho de realidade virtual consegue ser, porque ele afeta diretamente o seu aparelho vestibular. Descer uma montanha ou ir de encontro a uma curva brusca em realidade virtual, coloca o seu estômago na garganta quase tão bem quanto a coisa de verdade. Mas enquanto você está animado, o seu corpo está compensando demais o que o seu aparelho vestibular está sentindo. Se sentar lembra o seu corpo que não, você não está fazendo uma curva a 90 quilômetros por hora. Também permite que você fique conscientemente seguro. Porque se você não se sentir no chão, se o seu corpo consciente e inconsciente não estiver preparado para a experiência, então as coisas podem dar errado.

O pobre russo acima está em uma montanha russa de realidade virtual, e já que a realidade virtual é realista demais para o seu aparelho vestibular, ele está reagindo a cada subida, virada e queda. Ele também está usando um Oculus Rift DK1. É o primeiro grande aparelho de realidade virtual disponível para grande público, lançado em 2013. É um aparelho incrível, que de acordo com o cofundador da Oculus e ex engenheiro chefe Jack McCauley, é equivalente aos aparelhos de realidade virtual mais populares de hoje em dia, como o Google Daydream e o Samsung Gear VR. Infelizmente, tanto o DK1 quanto os headsets móveis de hoje em dia tem um problema crucial: eles não têm o que os engenheiros de realidade virtual chamam de “localização”. Bem distante do que os desenvolvedores de software chamam de “localização” (o ato de adaptar e traduzir um software para locais e países específicos), a localização em VR é feita para rastrear o corpo no espaço virtual. Alguns sistemas atuais fazem isso muito bem, rastreando não apenas para onde a sua cabeça está virada e a velocidade com a qual ela vira, mas também onde você existe dentro da experiência virtual. Se você for empurrado, como o aterrorizado homem acima, você vai pra frente no espaço virtual também. O pobre homem gritando no vídeo não teve esse luxo. Quando ele é empurrado, seus olhos não enxergam o movimento correspondente. Ao invés disso é como se ele tivesse sido amarrado, incapaz de se mover enquanto é violentamente (do seu ponto de vista) atacado. A realidade virtual enfrenta um sério problema pois ninguém conseguiu ainda aperfeiçoar a localização, que emula diretamente a relação entre os olhos e o aparelho vestibular no mundo real. “Quando eu estava trabalhando na Oculus, eu me dei a função de fazer a pesquisa sobre os efeitos da realidade virtual”, McCauley contou ao Gizmodo. Ele foi um dos poucos. O resto da empresa, gamers apaixonados prontos para realizar o sonho do Holodeck do Star Trek e dos romances cyberpunk de William Gibson, focaram em criar um produto maneiro que impressionava os sentidos. A potencial náusea, vômito, suadeira, fadiga e desorientação eram preocupações, mas não prioridade. McCauley, como Engenheiro-Chefe do DK1 e do DK2, gastou muito tempo tentando descobrir a relação entre a realidade virtual, nossos olhos e o aparelho vestibular, e notou que ainda não haviam pesquisas o bastante nesse campo fora do exército. “Eu acho que nós não entendemos direito como o cérebro funciona com o aparelho vestibular e a nossa visão”, diz McCauley. Sua relação com a realidade virtual permanece um mistério, e até ela ser resolvida sempre haverá uma ameaça para nossos corpos. Um deslize do banco ou empurrão de um amigo e você pode acabar como o pobre russo do vídeo, gritando em um abismo virtual.

O desafio do processamento computacional e diferentes públicos

Como McCauley notou, diferentes públicos têm expectativas muito diferentes quando vestem um headset de realidade virtual: pessoas não gamers podem tolerar um frame rate baixo e alguns problemas de gráfico, enquanto gamers não costumam aceitar esse tipo de “falha”. Gamers são a maioria das pessoas que estão desenvolvendo em realidade virtual e tudo, do headset de celular aos aparelhos de US$ 800 que você liga no seu computador, está sendo desenvolvidos para eles. Como alguém que tem três consoles e muitas e muitas horas investidas em Overwatch, além de uma boa lembrança de Virtual Mario, eu fui uma das gamers que ajudou nessa fome de potência.

A primeira vez que eu experimentei realidade virtual eu estava usando um antigo laptop e um Oculus Rift DK2. Eu não prestei atenção aos requisitos mínimos de sistema. Eu não pensei como um PC mais lento pudesse dramaticamente alterar a experiência de realidade virtual. Na minha cabeça seria tão simples quanto espelhar a tela do laptop em duas no headset, esse monstrengo com sua placa de vídeo móvel seria o bastante.

O que é lindo e familiar em uma tela de cinema se torna uma experiência nauseante quando você está sentado a centímetros de distância e vira a sua cabeça rapidamente para os lados.

 
Então eu tentei jogar Alien: Isolation. Os ventiladores do computador zumbiram forte enquanto lutava para rodar o vídeo no headset. Ele precisava da potência não para um, mas dois displays de 1080p dentro do headset, enquanto imediatamente renderizava um mundo inteiro em cada virada da minha cabeça. O rabo do alien andava pela tela a 60 frames por segundo. Isso é mais do que adequado quando você está sentando a um metro de distância, mas o headset estava tentando replicar o mundo real a apenas alguns centímetros. Isso requer, para um gamer, de pelo menos 90 frames por segundo.

Quando a taxa de atualização fica abaixo disso, o enjoo de realidade virtual pode aparecer, e está diretamente ligado a quão rapidamente você vira a sua cabeça. Por mais que uma alta taxa de atualização possa ser desejada pelos gamers, pessoas comuns vão estranhar, particularmente se eles planejam assistir algum conteúdo filmado. Isso porque todo o conteúdo que assistimos nos nossos celulares e TVs nos é entregue em 24 a 30 frames por segundo. Isso dá ao conteúdo, especialmente em movimento, um ar agradável, um ar “cinemático” que é impossível de ser replicado pelos headsets de realidade virtual de hoje em dia. Se aumentarmos o frame rate os atores vão parecer com atores de novela mexicana.

Com a realidade virtual nós vamos precisar ajustar o nosso gosto e reconfigurar o que os nossos cérebros consideram como “boa” cinematografia. Cineastas também estão envolvidos nessa questão. Ang Lee filmou “A longa caminhada de Billy Lyn” em 120 fps, James Cameron está próximo de filmar o próximo “Avatar” entre 48 a 240 fps, e Peter Jackson foi criticado por filmar “O Hobbit” em 48 frames por segundo. No geral, o público e os críticos não gostam de ver filmes nessas velocidades, a não ser como uma novidade. As imagens são muito mais claras com mais frames por segundo, o que é ótimo para explorar em um videogame, mas faz conteúdo filmado parecer que está sendo encenado no palco. Traduzir esse palco para o equivalente a uma tela de 105 polegadas em 360 graus requer todo um ajuste por parte do público.

Ajuste de expectativas

Mesmo assim não são apenas os olhos e gostos que precisam se ajustar para tornar a realidade virtual mais viável. É a nossa mente também. A realidade virtual está na tênue linha do que é real e do que nós percebemos enquanto real. É uma experiência real demais para nossos corpos ignorarem, mas falsa demais para nossas mentes acreditarem.

Mas as coisas estão mudando. Quando os primeiros simuladores de voo para pilotos apareceram, os pesquisadores notaram um problema. Os pilotos que já tinha horas de experiência em voo real estavam ficando enjoados ao voar em um simulador, enquanto pilotos que tinham horas de experiência de simulador ficavam enjoados ao voar em aviões de verdade. É o chamado enjoo de simulador, bem parecido com o enjôo de realidade virtual, e pode ser o maior problema que a realidade virtual precisa superar.

Se você passar tempo o bastante na realidade virtual o seu corpo pode se treinar. Mas o mundo real pode se tornar enjoativo.

 
Nossos corpos são tão incrivelmente sintonizados com o que os cerca que eles sabem, no nível neurológico, quando algo está estranho. Esse é o cerne do enjoo de simulação. Os pilotos estavam tão afinados com uma experiência extraordinária específica que quando encontraram uma parecida, mas um pouco diferente, eles ficaram enjoados.

Mesmo que você supere o enjoo de simulação, você pode encontrar problemas para voltar ao mundo real. “Parece que existe algum tipo de treinamento acontecendo na sua cabeça”, McCauley disse ao Gizmodo. Se você passar tempo o bastante na realidade virtual o seu corpo pode se treinar. Mas o mundo real pode se tornar enjoativo. Os projetos de realidade virtual atualmente são comandados por gamers. Palmer Luckey, Jack McCauley e seus colegas fundadores do Oculus desenvolveram o headset e transformaram a indústria da realidade virtual no que ela é hoje em dia por serem gamers prontos para levar o mundo à sua terra prometida virtual. O único problema é que essa terra prometida virtual não está tão pronta quanto os gamers gostariam. Não importa quão raramente você fica enjoado no mundo real, o mundo virtual é um ataque inescapável ao corpo humano. Seu sucesso vem do ato de enganar a mente e confundir os olhos. Mas nossos corpos conseguem perceber o estado não natural dos mundos virtuais, e quando percebem eles tentam nos proteger, causando o sentimento de que algo está errado que nos deixa enjoados. O problema está na tecnologia de realidade virtual em si. Ela simplesmente não é boa o bastante para fazer nossos corpos acreditarem.

Ilustração: Angelica Alzona/Gizmodo.

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