Como o Museu do Ipiranga retratava a Independência no início do século 20

Por decisão da direção da época, obras expostas nesse período excluíam a participação popular - o que levou décadas para ser alterado
Imagem: Hélio Nobre e José Rosael / Museu Paulista da USP

A partir de setembro, quem entrar no salão nobre do Museu Paulista da Universidade de São Paulo (MP-USP) encontrará, agora restaurados, dois quadros ao lado do monumental Independência ou morte!, do pintor paraibano Pedro Américo de Figueiredo e Melo (1843-1905), ambos pintados pelo italiano Domenico Failutti (1872-1923). À direita estará um retrato da imperatriz Leopoldina (1727-1826) cercada por seus filhos e à esquerda um de Maria Quitéria de Jesus Medeiros (1792-1853), que lutou na guerra pela Independência.

Nem sempre foi assim. Desde a inauguração do museu, em 1895, até 1905 ali estavam, de um lado, Caipira picando fumo, de outro, Amolação interrompida, ambos do pintor ituano José Ferraz de Almeida Júnior (1850-1899), depois transferidos para a Pinacoteca de São Paulo. O engenheiro e historiador catarinense Afonso d’Escragnolle Taunay (1876-1958) foi quem mandou ocupar os espaços então vazios com os quadros das duas mulheres ao preparar o Museu Paulista, cuja direção assumiu em 1917, para as celebrações do centenário da Independência, dali a cinco anos. Com apoio financeiro do governo estadual e de doações privadas, ele encomendou para o salão nobre outras obras ao pintor fluminense Oscar Pereira da Silva (1867-1939). Foram retratados dom Pedro I, José Bonifácio de Andrada e Silva (1736-1838), Joaquim Gonçalves Ledo (1781-1847), Diogo Antônio Feijó (1784-1843) e duas cenas, a expulsão das tropas portuguesas do Rio de Janeiro e a ação de deputados brasileiros na Corte em Lisboa. Filho de visconde e neto de barão, até aquele momento professor da Escola Politécnica, um dos núcleos que viriam a formar a Universidade de São Paulo (USP), Taunay acompanhou a produção das pinturas e não hesitava em solicitar os ajustes que lhe pareciam necessários. A atitude do diretor provocava discussões com os artistas, conforme detalham os historiadores Pedro Nery e Carlos Lima Junior em um artigo publicado em 2019 na revista Anais do Museu Paulista, ao comentarem a reforma de Taunay, que incluiu a remoção de outro quadro de Almeida Junior, o Partida da monção, mostrando o início de uma expedição bandeirante, da antessala do salão nobre para uma sala interna.

“Por meio de imagens, Taunay construiu, como se poderia esperar há 100 anos, uma história elitista, racista, machista e pacífica”, observa o historiador do MP Paulo César Garcez Marins. Apoiadas pela FAPESP, suas pesquisas se dão no âmbito do subprojeto “Representações artísticas do passado nas coleções do Museu Paulista da USP”, parte de um projeto temático coordenado pela historiadora de arte Ana Gonçalves Magalhães, diretora do Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP. Apesar de a imperatriz ter sido uma mulher com força política e uma das articuladoras da Independência, observa ele, foi retratada como mãe, cercada de filhos. Baiana, filha de fazendeiro, Maria Quitéria aparece em trajes militares, segurando um mosquete, como uma militar, não como um membro das forças populares contra o exército português na luta pela Independência na Bahia. “Taunay reduziu o papel das mulheres e excluiu o povo e os conflitos armados durante as batalhas da Independência”, sintetiza. “Como o hall do Museu, a escadaria e o Salão Nobre são tombados e não podemos alterá-los, tomamos as obras que decoram esses espaços como documentos, para discuti-las com os visitantes, apresentando-as como uma forma de ver a história, não como a própria história” ().

No MP, ele argumenta, não há grandes telas de batalhas históricas, como as do Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro ou do Museu Histórico Nacional de Buenos Aires. A única tela com cena bélica encomendada por Taunay, Combate de milicianos de Mogi das Cruzes com botocudos, de 1 metro (m) por 1,5 m, mostra bandeirantes atirando com mosquetões em indígenas, que revidam com flechas. Nesse quadro, Oscar Pereira da Silva pintou os sertanistas com o chamado gibão de armas, um colete atravessado por costuras formando losangos que, embora fossem comuns no século XVIII, não no XVII, se tornariam um dos símbolos dos bandeirantes, como os chapéus e as botas, descreve Marins em um artigo publicado em 2020 na revista Tempo.

Em 1929, Taunay solicitou a pintura Partida da monção, de Almeida Junior, que fora levada para a Pinacoteca, e com ela “compôs uma sala dedicada às expedições fluviais”, comenta a historiadora do MP Michelli Monteiro em um artigo publicado em 2019 nos Anais do Museu Paulista.  Com a  tela de Almeida Junior, vieram Descobrimento do Brasil e Fundação de São Paulo, ambos de Oscar Pereira da Silva. As três telas, imensas, reforçam a ideia de que o passado brasileiro era marcado pelo diálogo e pela expansão territorial tranquila, e não pelo conflito.

“Ao glorificar os bandeirantes como personagens relevantes na definição do território e das fronteiras, Taunay definiu o papel de São Paulo na formação do Brasil”, prossegue Marins. “Com as pinturas, o passado paulista se tornava grandioso.” Na época da Independência, São Paulo era uma cidade pequena e pouco expressiva, mas em 1917 já era a segunda do país, um pujante centro econômico, movido pelo cultivo do café no estado. Para o historiador, “Taunay levou a ferro e fogo” a ideia de que “a história de São Paulo é a própria história do Brasil”, expressa pelo historiador Antônio de Toledo Piza (1848-1905) na apresentação do primeiro número da Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, em 1895.

Taunay dirigiu o Museu do Ipiranga e o Museu Republicano Convenção de Itu até 1945. Nesse tempo, foi professor da então chamada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP e publicou os 11 volumes de História geral das bandeiras paulistas, entre 1924 e 1950. Também escreveu três dicionários, incorporando verbetes de medicina, química, física, biologia e astronomia.

O renascimento de um museu

Em 2013, ao fechar para reforma, o Museu Paulista (MP) tinha cerca de 10 salas de exposição distribuídas em dois andares e banheiros apenas no subsolo. Ao reabrir, em setembro, terá banheiros, elevadores e acesso para pessoas com deficiência nos quatro andares. O número de salas para exposições permanentes ou temporárias saltou para 49 – a manutenção do acervo de cerca de 200 mil peças em imóveis próximos, para onde foi removido no início das obras, propiciou a liberação de espaço interno. Como resultado da reforma iniciada em 2019 e agora concluída, a um custo de R$ 211 milhões, o espaço expositivo ganhou mais 6 mil metros quadrados, com a construção de um subsolo, e a previsão é de que o número de visitantes anuais chegue a pelo menos 700 mil, o dobro do registrado há cerca de uma década. “Criamos uma área de acolhimento dos visitantes, com banheiros, cafeteria, livraria e auditório, e um mirante, no último andar”, conta a arquiteta Rosaria Ono, diretora do MP, à frente da equipe de cerca de 100 pessoas que preparam as 11 exposições da reinauguração do museu.

Segundo ela, a ampla reforma foi necessária para adequar o museu à legislação e para garantir a segurança de funcionários e visitantes. Outra razão, ela acrescenta, é que “o prédio não foi projetado para ser um museu, mas para ser um edifício-monumento, como o memorial de Abraham Lincoln (1809-1865) em Washington, nos Estados Unidos, e abrigar apenas o quadro Independência ou morte!”.

Texto publicado originalmente na revista Pesquisa FAPESP

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