Ao atravessar o viaduto Santa Ifigênia, na região central de São Paulo, chegamos a dezenas de lojas de produtos eletroeletrônicos e boxes alinhados em galerias a perder de vista.
Gritos, placas com preços e ‘chamadores’ [que ficam na frente dos boxes buscando clientes] que insistem em perguntar o que os consumidores procuram. A regra é tentar convencer e solucionar o problema, na maioria das vezes eletrônico, de quem perambula pela região e oferecem produtos que vão de acessórios para DJs até peças para computadores gamers.
O bairro homônimo, construído no século XIX e formado no passado por classes sociais bastante distintas, passou a ser um verdadeiro polo de tecnologia na cidade a partir da década de 1970.
“Vejo a Santa Ifigênia como o único lugar onde eu conseguia comprar peças de computador ou qualquer coisa eletrônica. Meus irmãos, por exemplo, compraram sons para colocar no carro, eletrônicos para a casa e até celulares”, conta William Oliveira, 30, engenheiro de software e coordenador educacional, que morou durante a infância e começo da vida adulta em Las Palmas, periferia de São Bernardo do Campo.
“Muitas pequenas empresas da periferia só existem graças aos recursos que a gente consegue ali. Hoje, existem muitas assistências técnicas de celulares, assim como manutenção de computadores, onde o preço é melhor para a quebrada porque as peças vêm de lá”, complementa.
Atualmente, a região atrai uma clientela fixa e demais pessoas em busca de artigos eletrônicos e de informática. Mas, durante os anos 1970, o local era frequentado majoritariamente por profissionais técnico-braçais, como pedreiros, eletricistas e técnicos de sons, explica Fábio Mariano Borges, doutor em Sociologia do Consumo pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).
“Sempre houve uma clientela técnica ali. Foi por isso que a Santa Ifigênia deu certo, porque se percebeu que aquele público dependia e demandava de uma especialização. O empreendedor tinha que se especializar porque ele ia falar com pessoas especializadas”, conta.
Assim, ao longo dos anos, o bairro foi se transformando no polo de tecnologia como é conhecido hoje em dia – ou um “cluster” de eletroeletrônicos, como define o sociólogo.
E a concorrência de várias lojas ajuda em vez de atrapalhar. “É muito mais vantajoso que os comerciantes estejam no mesmo polo, um ao lado do outro, porque isso facilita a venda”, explica Borges.
“Clusters são áreas especializadas em determinados segmentos comerciais e elas existem porque atendem a públicos especializados”, completa.
Segundo o sociólogo, é como se o cliente fosse para uma feira e escolhesse os produtos que ele precisa a partir de critérios de preço, atendimento, garantia e segurança que o atendente passará no momento da venda.
“Hoje, diferentemente da década de 1970, a área não recebe apenas os especialistas técnicos. Ela recebe usuários que vão lá para consertar ou ver peças para algum produto. Essas pessoas não têm o domínio técnico e precisam ser orientadas para a escolha. Elas chegam ali na região quase como se fossem turistas sem mapa”.
Feira livre eletrônica
De acordo com o , que reúne um catálogo de lojas da região, somente na rua Santa Ifigênia há cerca de 1037 lojas. Mergulhar nesse universo entre feira livre e inovação é a certeza de tentar ser convencido por um chamador a trocar a capinha do seu smartphone, comprar novos acessórios e conhecer bugigangas tecnológicas apresentadas de forma simples e com os apelativos de uma feira, onde ninguém grita os preços das bananas, mas tenta conquistar no laço qualquer um que passe.
Com sotaque mineiro puxado, mas fala rápida e sempre correndo para atender os clientes, ligações e responder o Whatsapp está Fernanda Sales Pereira, 39. A empreendedora é proprietária da loja Ab Informática, que vende produtos de informática na rua Santa Ifigênia desde 1999. Segundo ela, o negócio atende ao público do País inteiro e tem fornecedores de outros Estados, como Paraná, Espírito Santo e Santa Catarina.
Pereira diz que a regra da casa é tratar o cliente da melhor maneira possível. “Trabalhamos em família, somos todos mineiros e somos bons de papo”, ri. “Chamamos o cliente de longe, tipo feira mesmo, mostramos os nossos produtos, explicamos sobre eles e montamos o computador como ele necessitar”, comenta.
Para ela, embora haja concorrência com o e-commerce e entre outros lojistas da rua, o contato entre o vendedor e o comprador tem muita influência na hora da negociação. “Ver o produto, acompanhar a montagem e poder levar para casa na mesma hora é um diferencial muito grande”, diz. “Indo na loja física o cliente tem mais confiança, o poder de compra é melhor e, para nós, também é melhor para podermos negociar”.
Pereira passou por tempos difíceis nos primeiros meses de pandemia de Covid-19, mas a saída foi levar o papo bom e a vitrine de produtos e computadores com luzes coloridas para o Instagram. Com 119 mil seguidores na rede social, os posts e stories aumentaram para oferecer e apresentar produtos, que eram vendidos e entregues exclusivamente por motoboys.
O bairro é o local de emprego para muitos trabalhadores e reúne desde empresários até os “chamadores”. A estrutura, parecida com uma feira, também tem pechinchas e gritos para anunciar os produtos – características que têm forte relação com a manutenção do local.
“Como as calçadas são muito estreitas e as lojas são muito profundas e verticais, elas não proporcionam boa visibilidade para o público. Como recurso de sobrevivência, tem que ter essas pessoas na porta das lojas, gritando, chamando, perguntando o que o cliente deseja”, explica Borges.
O sociólogo também explica que, ao contrário de um mero grito anunciando uma oferta, os “chamadores” estão destacando os produtos que eles têm e, consequentemente, chamando os clientes para ter uma orientação. “Essa gritaria se faz de uma forma muito peculiar. Não dá para comparar com uma feira, onde o vendedor está gritando o preço da banana”, diz.
Na pandemia, pirataria ganha força
O autônomo Felipe Garcia Pereira, 30, trabalha atualmente com automação residencial. Há 10 anos, ele era responsável por uma lan house em São Bernardo do Campo, no ABC Paulista, e começou a comprar equipamentos para manutenção de computadores no bairro de Santa Ifigênia.
Posteriormente, o negócio migrou para uma assistência técnica. “Eu sempre gostei de tecnologia. Assim que eu saí da lan house, montei uma assistência de celulares, notebooks e tablets. Na época, eu ia todos os dias para lá”, conta.
A empresa, no entanto, faliu durante a quarentena. Segundo Pereira, a falta de fornecimento de peças de qualidade na região foi o principal motivo para isso.
“Como a Santa Ifigênia é o polo principal em São Paulo, as peças que chegavam da China iam direto para lá. Como a pandemia não deixou chegar mais nada em lugar nenhum, as peças originais que ficaram no Brasil acabaram e os fornecedores começaram a vender peças paralelas como se fossem originais”, alega.
A venda das peças não originais foi um problema para a assistência do empreendedor, que não conseguiu continuar com o trabalho. “Sempre fiz questão de manter a qualidade do serviço acima de tudo, então a partir do momento em que isso começou a acontecer, eu não consegui dar o respaldo que eu dava para os meus clientes”, conta.
Os tempos remontam o período entre os anos de 1970 e 1990, a pirataria se destacou em algumas áreas da cidade com a venda de produtos sem nota fiscal. Fábio Mariano Borges cita como exemplo a Galeria Pagé, também no centro de São Paulo, que vendia mercadorias de contrabando naquela época – embora aponte que atualmente ela não seja mais assim.
“Já na Santa Ifigênia, você está falando com técnicos. A pirataria lá acontece, claro, mas ela é explícita e transparente. Eles não estão te indicando um equipamento só pela pirataria, mas sim auxiliando na solução que você precisa”.
Neste sentido, o técnico explica as vantagens do produto original em comparação com outro pirata para atender a uma solução que o consumidor precisa e com um preço menor. “A pirataria vem ‘abençoada’ e vem com garantia, caso o produto apresente algum defeito posteriormente”, finaliza Borges.