Uma lei de décadas atrás, que proíbe pesquisadores de fazer experimentos em embriões humanos com mais de 14 dias, está sendo contestada por uma bioeticista britânica, que diz que essa regra é ultrapassada, arbitrária e um impedimento desnecessário ao progresso científico.
Ao trabalhar com embriões de 28 dias de formação, os cientistas serão mais capazes de prevenir abortos, desenvolver novos tratamentos médicos e melhorar as tecnologias de reprodução assistida, argumenta Sophia McCully, bioeticista do Departamento de Saúde Global e Medicina Social do King’s College London, em um revisado por pares publicado na segunda-feira (1) no Journal of Medical Ethics.
A regra dos 14 dias existe há cerca de 40 anos. Nos Estados Unidos, ela tem sido aplicada pelo National Institutes of Health desde 1979. No Reino Unido, a norma é mantida pela Human Fertilization and Embryology Authority. O princípio é respeitado em muitos outros países e jurisdições, incluindo Austrália e Canadá, tanto formal quanto informalmente.
No Brasil, a (Lei n° 11.105/2005) determina que a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos, produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, é permitida para fins de pesquisa e terapia, desde que sejam embriões inviáveis ou congelados há mais de três anos, sendo que é necessário o consentimento dos genitores em ambos os casos. Apesar da lei não especificar explicitamente o prazo de 14 dias, muitos cientistas brasileiros seguem a mesma .
Este limite de 14 dias foi escolhido porque é somente após esse estágio que o sistema nervoso central começa a se desenvolver, mas, como McCully escreve, “aqueles que se opõem à regra argumentam que este foi simplesmente um limite de tempo arbitrário que foi escolhido como um compromisso para permitir qualquer pesquisa em um momento em que as opiniões pró-vida eram fortes”. Além disso, “agora podemos ter certeza de que é seguro fazer uma mudança de política e estender a regra de 14 dias sem medo de qualquer implicação moral e regulatória, uma preocupação que não precisa se aplicar à regra de 14 dias”, ela escreve.
McCully afirma que a pesquisa feita entre a janela de 15 a 28 dias é crítica, dizendo que mudanças massivas de desenvolvimento são experimentadas pelo embrião durante este período.
A pesquisa em embriões humanos durante este período pode levar a muitos novos insights e intervenções científicas, diz ela, incluindo a mitigação de defeitos congênitos (como doenças cardíacas), avanços na fertilização in vitro, a prevenção de abortos espontâneos e o teste de novas técnicas, incluindo (coloquialmente conhecida como “bebês de três pais”) e (esta última para eliminar doenças genéticas ou conferir novas capacidades, como imunidades a doenças transmissíveis).
Ela diz que o argumento de que os modelos animais, incluindo embriões de macaco, são substitutos suficientes para embriões humanos não é totalmente correto. Evidências recentes sugerem “que mesmo a morfologia do blastocisto de mamífero difere substancialmente entre as espécies”, escreve McCully, e “embora os modelos animais sejam úteis até certo ponto, afinal alguns mecanismos são semelhantes, esta diversidade mostra que realmente não há substituto para um embrião humano para se entender a embriogênese humana.”
A limitação de 14 dias também parece arbitrária, considerando as leis de aborto em vigor, nas quais a gravidez pode ser interrompida muito além dos 14 dias, ela escreve.
“A partir dessa análise, e de outras, não há razões éticas substantivas para não alterar o limite”, argumenta McCully. “A pesquisa de embriões é um empreendimento crucial e nos ajudará a fazer muitas descobertas transformacionais, portanto, estender esse limite arbitrário é um esforço que deve ser alcançado.”
James Hughes, bioeticista do Instituto de Ética e Tecnologias Emergentes, disse que duas semanas não é um limite significativo para determinar o significado moral de um embrião e um feto. Durante o século 18, a “linha [que determinava o prazo para realizar testes] era a ‘aceleração’, ou seja, quando um feto começava a se mover”, explicou Hughes em um e-mail,,
Hughes concordou que os cientistas não deveriam ter que tratar os tecidos embrionários como sendo exatamente iguais aos outros tecidos”, mas se seu significado moral é determinado por sua capacidade de sentir dor ou autoconsciência. Se for assim, os embriões de um mês também podem ser um tumor ou um rim”, disse Hughes. Em última análise, o artigo de McCully apresenta uma “proposta muito cautelosa para o avanço da pesquisa que beneficiará todas as crianças, sem risco moral”, disse Hughes, acrescentando que é uma “reforma necessária”.
O bioeticista Kerry Bowman da Universidade de Toronto disse que a regra dos 14 dias foi estabelecida não apenas por causa da “linha primitiva” – uma linha visível e objetiva de células (indicativa de um sistema nervoso central nascente) – mas também porque se acredita que é quando a individuação começa, o que significa que, após esse tempo, o “embrião não é mais capaz de formar gêmeos ou múltiplos de ordem superior espontaneamente”, o que garante “o início de um indivíduo”, escreveu ele por e-mail.
“Ainda assim, eu argumentaria que a verdadeira razão para o limite de 14 dias é mostrar um espírito de respeito em sociedades pluralistas complexas com uma ampla gama de pontos de vista sobre o status moral do embrião”, explicou Bowman. “A regra dos 14 dias não satisfez a todos, mas reconhece e respeita muitas pessoas que têm pontos de vista ‘gradualistas’ sobre o status moral do embrião.”
Um grande desafio com a mudança proposta, disse ele, é que ao quebrar um padrão altamente simbólico, público e (frequentemente) internacional, os cientistas podem perder a confiança de certos segmentos da população e até mesmo de outras nações.
“Acredito que essa mudança precisa de ampla exposição pública e debate, pois levar isso adiante sem revisão pública pode criar hostilidade significativa ao campo da embriologia”, disse Bowman.
Nos últimos anos, outros especialistas já defenderam um caso semelhante ao que foi publicado no Journal of Medical Ethics (veja , , e ), mas nada parece mudar a este respeito. Talvez o artigo de McCully reviva essa conversa tão necessária.