Mantido a 184 graus Celsius (oC) negativos em câmaras, o argônio, que é um gás nobre à temperatura ambiente, torna-se líquido e pode ser empregado para atingir o principal objetivo do experimento: a detecção de neutrinos, misteriosas partículas subatômicas que quase não têm massa, não apresentam carga elétrica e interagem muito pouco com qualquer material. Por ter núcleo atômico relativamente pesado, esse elemento químico tem maior probabilidade de interagir com os neutrinos, a segunda partícula mais abundante do Universo depois dos fótons (partículas de luz).
As câmaras de argônio líquido são o que há de mais avançado para a detecção de neutrinos. Quanto maior seu volume, maior a probabilidade de interação com as partículas. Por isso, o Dune terá quatro piscinas, cada uma com 17 mil toneladas desse elemento químico liquefeito. No entanto, alguns contaminantes dentro do tanque podem comprometer os resultados dos experimentos. Os três mais comuns são o oxigênio, a água e o nitrogênio. Para os dois primeiros tipos de impurezas, existem filtros moleculares eficientes. Para o nitrogênio, não – ao menos até a equipe brasileira aparecer com seu invento. Os contaminantes são encontrados geralmente numa ordem de grandeza abaixo de 10 partes por milhão (ppm), ou seja, de pouquíssimos microgramas em cada grama de argônio. “Esse nível de impureza inviabiliza a realização do experimento e não existe a possibilidade de comprar no mercado argônio líquido com um grau de pureza mais elevado”, explica o físico Pascoal Pagliuso, líder do grupo na Unicamp que desenvolveu o novo método. “O nível exigido para o Dune dar certo é de pouquíssimas moléculas de impurezas, em partes por trilhão.”Com apoio da FAPESP, os pesquisadores brasileiros começaram a desenvolver em 2020 uma forma eficiente de purificar o argônio com o emprego de uma peneira molecular porosa conhecida como zeólita, à base do mineral aluminossilicato (composto de alumínio, silício e oxigênio). A pesquisa básica que deu origem à tecnologia foi uma investigação da equipe de Pagliuso na Unicamp sobre as diferenças entre as moléculas de nitrogênio (N2) e de argônio (Ar) e sua resposta à aplicação de um campo elétrico.
Os resultados dos testes feitos no PuLArC foram publicados em agosto de 2024 na revista Journal of Instrumentation. Segundo o trabalho, um filtro feito com o material conhecido como Li-FAU, que contém lítio além do aluminossilicato, foi o mais eficiente em capturar moléculas de nitrogênio em meio ao argônio líquido. Com seu emprego, a contaminação em 100 litros de argônio, que inicialmente se situava entre 20 e 50 ppm, desceu para a faixa de 0,1 a 1 ppm em menos de duas horas. O filtro também foi testado pela equipe do Dune em um recipiente maior, com capacidade para 3 mil litros, e os resultados foram igualmente bons.
No momento, o método à base de Li-FAU está em estágio final de testes no ProtoDune, o protótipo do Dune que funciona na Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (Cern), na fronteira franco-suíça. Ali, a quantidade de argônio líquido a ser purificado ultrapassa a casa das toneladas. O novo método foi patenteado e pode, no futuro, servir a outros fins. Ele parece ser versátil e ter potencial para ser utilizado para purificar outros gases, talvez o dióxido de carbono, e líquidos em escala industrial. O filtro para retirar contaminantes do argônio líquido é a segunda contribuição significativa da participação brasileira no Dune, que reúne 1.400 cientistas e engenheiros de 200 instituições e 35 países. A primeira foi o desenvolvimento de uma armadilha de fótons, que capta a luz cintilante produzida pela interação dos neutrinos com os átomos de argônio. Invisível ao olho humano, a luz apresenta um comprimento de onda de 127 nanômetros. Ao armazenar esse tipo de registro, a armadilha permite estudar propriedades dos neutrinos e reconstituir sua trajetória em três dimensões. O aparato, denominado X-Arapuca, foi criado em meados da década passada pelos físicos Ettore Segreto e Ana Amélia Machado, da Unicamp. Sua versão 2.0, a mais atual, já está sendo utilizada nos Estados Unidos. Os neutrinos disparados no Fermilab vão viajar pela crosta terrestre e chegar aos tanques com argônio líquido. A interação com o argônio libera elétrons e produz cintilações de luz. Um campo elétrico uniforme dirige os primeiros para detectores de elétrons. Os fótons gerados pelas cintilações são capturados pelas armadilhas X-Arapuca. “Com os fótons produzidos na cintilação, consigo calcular em que momento os neutrinos chegaram, de qual direção vieram e como se deu sua interação com o argônio”, explica Machado. Até hoje, não se conhece a massa de cada um dos três tipos de neutrinos conhecidos – neutrino do múon, neutrino do tau e neutrino do elétron – nem por que eles oscilam entre si conforme se movimentam. No centro de pesquisas Sanford, onde ficará o maior detector do Dune, pelo menos dois dos quatro módulos do experimento contarão com X-Arapucas. As armadilhas formarão um sistema de fotodetecção ao redor das piscinas de argônio líquido. Por meio de financiamento da FAPESP, o Brasil será responsável pela construção de parte dos componentes e pela montagem e instalação de 6 mil X-Arapucas em um dos módulos do Dune até o início da tomada de dados, prevista para 2029. “O maior desafio será coordenar o processo de construção das armadilhas no país e o recebimento dos componentes restantes do exterior sem desrespeitar o cronograma do experimento”, avalia Segreto. “No Brasil, vamos produzir as partes mecânicas e os filtros ópticos, que são os itens mais importantes para o funcionamento do dispositivo.”Para o físico Sylvio Canuto, da Universidade de São Paulo (USP), é muito importante investir no Dune, que deverá revelar detalhes sobre os neutrinos e, consequentemente, sobre a formação do Universo. Uma das questões mais intrigantes é tentar entender por que há mais partículas do que antipartículas no Cosmo. “Em tese, esperávamos que partículas e antipartículas tivessem sido criadas na mesma proporção no início de tudo. Mas vemos hoje que o Universo é formado majoritariamente por partículas. A origem desse mistério é atribuída ao papel dos neutrinos e hoje estamos mais próximos de desvendá-lo”, comenta Canuto, que acompanha a participação brasileira no Dune desde o início do projeto e é assessor da Diretoria Científica da FAPESP. O próximo passo, segundo o físico da USP, é garantir a participação brasileira no trabalho de análise dos dados produzidos no Dune, formando assim um hub de referência no país para a América Latina.
A reportagem acima foi publicada com o título “Mais perto dos neutrinos” na edição impressa nº 344, de outubro de 2024.
Projetos
1. Instrumentação avançada para grandes colaborações em física de altas energias: Purificação de ar e fotodetecção para o LBNF-Dune (); Modalidade Auxílio à Pesquisa ‒ Projetos Especiais; Pesquisador responsável José Pagliuso (Unicamp); Investimento R$ 84.484.851,05.
2. Sistema de detecção de luz do Deep Underground Neutrino Experiment (); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Ettore Segreto (Unicamp); Investimento R$17.916.736,09.
3. Sistema de detecção de luz para o experimento Dune X-Arapuca (); Modalidade Jovem Pesquisador; Pesquisadora responsável Ana Amélia Bergamini Machado (Unicamp); Investimento R$ 2.992.720,82.
Artigo científico
CARDOSO, D. et al. Journal of Instrumentation.v. 19. ago 2024.