Em novembro passado, alguns meios de comunicação divulgaram que, pela primeira vez, havia sido registrada no Brasil uma área com clima de deserto. A região se localiza no vale submédio do rio São Francisco, no centro-norte da Bahia, colada na divisa com Pernambuco. Seu território equivale a quase quatro vezes o da cidade de São Paulo. Abrange um pequeno ponto na fronteira dos dois estados, em torno da pernambucana Petrolina e da baiana Juazeiro, e uma faixa de terra maior, situada entre 200 e 300 quilômetros mais ao norte.

A notícia do avanço de áreas secas era verdadeira em sua essência. Porém, seu tom estava um pouco acima do adequado. A área em questão havia sido, na verdade, elevada da condição histórica de semiárida à atual de árida. A mudança de status é inédita no país e esse trecho do Nordeste, de pouco mais de 5.700 quilômetros quadrados (km2), figura hoje como o mais árido do Brasil. Mas isso não significa que ali se formou um pequeno deserto, um ecossistema classificado como de clima hiperárido, um estágio mais extremo do que o árido, e praticamente desprovido de vegetação.

Exagero midiático à parte, a conclusão central da nota técnica do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) que embasou a reclassificação da área nordestina confirma informações produzidas por diferentes estudos, com metodologias distintas, em anos recentes. A maior parte do território nacional, com exceção da região Sul e de setores litorâneos do Sudeste, está ficando menos úmida. A tendência dominante indica que os lugares secos do Brasil (e do mundo) estão se tornando ainda mais secos e os úmidos menos úmidos. No Brasil, a clara exceção a esse movimento são os três estados do Sul, hoje úmidos e que devem permanecer assim no futuro. Essa propensão a um clima menos úmido vale inclusive para parte da Amazônia, o bioma com maior estoque de água no país, onde o desmatamento progressivo da floresta e as mudanças climáticas contribuem para tornar o ambiente mais quente e com períodos de estiagem prolongada.

“Há um aumento significativo da demanda atmosférica por água. Isso está levando o Nordeste e boa parte do país a uma condição de maior secura”, diz o engenheiro de recursos hídricos Javier Tomasella, do Inpe, um dos autores do estudo sobre o avanço da aridez. “A evapotranspiração se intensifica porque a temperatura está subindo no país em razão do aquecimento global.”

Desde 1960, a área do semiárido cresce e hoje abrange cerca de 800 mil km2, 9,4% do território nacional

A culpa da secura crescente, portanto, não se deve apenas – ou principalmente – à falta ou irregularidade de chuvas, mas sobretudo ao incremento da evaporação de água do solo e da transpiração das plantas, processo denominado evapotranspiração. “Desde que haja água no solo e sua capacidade de fazer fotossíntese não seja um impeditivo, a vegetação de superfície utiliza a energia da radiação absorvida para perder umidade em vez de usá-la para aquecer o ambiente. Essa é uma forma de limitar o aquecimento da baixa atmosfera, como um mecanismo de termorregulação”, comenta o especialista em hidroclimatologia Humberto Ribeiro da Rocha, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), que não participou do estudo. Quanto mais quente, mais a atmosfera demanda água da superfície para obter o combustível para formar nuvens de chuva, o vapor de água (ver reportagem).

Para classificar o clima do país, os pesquisadores do Inpe e do Cemaden calcularam a evolução de um índice de aridez ao longo das últimas seis décadas. Juntaram dados de medições feitas em estações meteorológicas e estimativas referentes a quatro períodos sucessivos de 30 anos (1960-1990, 1970-2000, 1980-2010 e 1990-2020). Essa abordagem permite enxergar para onde a umidade caminha com o passar do tempo. Em seguida, determinaram a taxa de umidade para todo o território nacional, com ênfase nas regiões mais secas, para cada ciclo de 30 anos. O índice de aridez de uma região em um período é dado por uma equação simples: o total acumulado de chuva dividido pela evapotranspiração potencial (a quantidade máxima de água que pode ser perdida para a atmosfera por esse processo). Alguns trabalhos usam apenas os valores das chuvas, mas os autores preferiram adotar o índice, considerado por eles mais adequado para medir o grau de aridez. Os relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) também trabalham com esse índice, além de analisar a evolução somente da chuva acumulada ao longo do tempo.

Quando a quantidade de água que cai com a chuva supera a que deixa a superfície de uma região pela evapotranspiração, o resultado dessa conta é maior do que 1. Se a situação for o contrário (menos chuva do que evapotranspiração), o valor do índice de aridez é menor do que 1. Por esse parâmetro, áreas consideradas secas são aquelas cuja razão entre chuva e evapotranspiração não ultrapassa o valor de 0,65 (ver mapas). Ou seja, a água que cai com a pluviosidade equivale a no máximo 65% da que sobe para a atmosfera pela transpiração das plantas e evapora da superfície. Acima desse limite, os climas são considerados como úmidos.

Imagem: Rodrigo Cunha
As regiões em que o índice de aridez apresenta valores inferiores a 0,05 são classificadas como hiperáridas. “Esse é o clima dos desertos”, comenta Tomasella. No Brasil, não há áreas assim. As que o índice fica entre 0,05 e 0,2 são as áridas, como é o caso das terras da Bahia e Pernambuco recém-elevadas a essa condição. Quando o valor se situa entre 0,2 e 0,5, trata-se de uma zona semiárida, caso de boa parte do interior do Nordeste. O clima chamado de subúmido seco apresenta resultado entre 0,50 até 0,65. Em Chorrochó, município baiano situado dentro da nova zona árida, por exemplo, o total acumulado de chuvas anuais foi de 374 milímetros (mm) nas últimas três décadas. No mesmo período, a evapotranspiração foi de 1.956 mm. Esses valores geram um índice de aridez de 0,19, dentro da faixa classificada como árida. “No entorno da divisa da Bahia com Pernambuco, há localidades cujo índice de aridez está muito próximo de 0,2, às vezes ligeiramente acima, com valores de 0,21 ou 0,22”, explica a física Ana Paula Cunha, do Cemaden, outra autora do estudo. “Em pouco tempo, essas localidades deverão igualar ou ficar abaixo de 0,2 e também serão classificadas como de clima árido. Se levarmos em conta esses sítios, a extensão da zona árida sobe dos atuais 5,7 mil para quase 15 mil km2.” O trabalho do Inpe e do Cemaden também analisou a evolução apenas do total de chuvas no país. Por essa metodologia, a área de semiárido é um pouco menor do que a calculada pelo índice de aridez, mas também apresenta viés de crescimento. No Brasil, regiões com menos de 800 mm de chuva anual são definidas como pertencentes ao semiárido legal. O surgimento da área árida foi observado somente nos últimos 30 anos da análise. Já a região do semiárido cresceu sempre durante as últimas seis décadas. Foi de 570 mil km2 no período 1960-1990 para quase 800 mil km2 entre 1990-2020, o equivalente a 9,4% do território nacional. Esse incremento se deu às custas da retração de áreas de subúmido seco, especialmente entre 1970 e 2010. No entanto, na janela temporal de 1990 a 2020, as áreas classificadas como dentro dos três climas secos presentes no Brasil (árido, semiárido e subúmido seco) se expandiram. Outro dado relevante foi o aparecimento de zonas subúmidas secas, a partir de 1990, em dois pontos do território nacional em que não havia esse tipo de clima: no oeste de Mato Grosso do Sul, em pleno Pantanal, a maior planície alagada do planeta, e no norte do Rio de Janeiro, no Sudeste.

Vários estudos sinalizam que outras partes do país, além do Nordeste, estão se tornando menos úmidas. Um artigo do ecólogo Gabriel Hof-mann, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), indica que o Cerrado, sobretudo sua porção centro-norte, mais próxima da fronteira de desmatamento no sul da Amazônia, tornou-se significativamente mais seco nas últimas três décadas. Entre junho e novembro, período que abrange a estação seca e o início da temporada úmida, certas localidades do bioma apresentaram uma redução de cerca de 50% no volume da precipitação média acumulada e no número de dias com chuva. O trabalho foi publicado em julho de 2023 na revista Scientific Reports ().

Outras pesquisas apontam para uma redução da área periodicamente alagada no Pantanal, uma diminuição crescente do pulso das águas que marca a vida da região. Artigo publicado em 2020 na revista científica Acta Limnologica Brasiliensia, antes de o bioma ter sido assolado por grandes incêndios em razão de uma de suas piores secas, reforçou essa percepção. O estudo apontou, em um período de 10 anos, um encolhimento de 16% na extensão de território alagado na porção norte do bioma em agosto, mês que marca o pico da estação seca. O trabalho foi coordenado pelo ecólogo aquático Ernandes Sobreira Oliveira-Júnior, da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), campus de Cáceres (). Esse cenário casa perfeitamente com o surgimento de uma área de clima subúmido seco no oeste de Mato Grosso do Sul, como apontado pela nota técnica do Inpe e Cemaden.

Para o meteorologista Humberto Barbosa, da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), o avanço da aridez, sobretudo no Nordeste, não é nada surpreendente. “Para quem mora na região, é perceptível. Quando estamos em campo, o agricultor e o sertanejo nos dizem que antigamente chovia mais. Nos últimos 20 anos, as secas provocadas não só pela redução da chuva, como pelo aumento das altas temperaturas, fizeram com que a perda hídrica aumentasse bastante”, relata Barbosa.

Como destacou o sexto relatório do IPCC, de 2021, as mudanças climáticas, das quais o aquecimento global é o principal motor, aceleram o ciclo da água. Seu transporte da superfície terrestre (onde está em sua fase líquida ou sólida, no caso das geleiras) em direção a atmosfera (na forma de vapor de água), e vice-versa, torna-se mais veloz e intensa. Isso faz com que haja tanto chuvas mais fortes e inundações, a exemplo das que ocorreram recentemente no Sul do país, como secas mais severas (ver reportagem).

“Não é porque uma área está se tornando mais seca ao longo do tempo que ela não pode ser alvo também de chuvas fortes, concentradas em poucas horas ou dias”, comenta o climatologista José Marengo, do Cemaden. Às vezes, o total anual da pluviosidade não muda significativamente, mas sua distribuição sim. Isso faz com que o período de estiagem seja mais quente e se prolongue por mais tempo, atrasando o início da época mais úmida. Nesses casos, quando a chuva finalmente chega, ela pode ter uma forma violenta, com tempestades. “Estamos vendo isso ocorrer agora nas áreas mais desmatadas da Amazônia, no sul e no leste do bioma”, diz Marengo.
Zonas de clima subúmido seco apareceram no oeste do Pantanal e no norte do Rio de Janeiro
Ainda que não seja um indicador perfeito, a quantidade de chuva total acumulada em um ano é um parâmetro importante, que não pode ser ignorado. Dados do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) registram diminuição da pluviosidade anual em cerca de dois terços do território brasileiro no período entre 1991 e 2020 em relação aos 30 anos precedentes. As quedas mais expressivas foram na região Nordeste e, em menor escala, na Centro-Oeste, norte da Sudeste e em setores da Amazônia (sul, leste e parte do oeste). “No Nordeste, identificamos reduções anuais superiores a 100 mm, com destaque para a estação meteorológica de Cipó, na Bahia, onde houve uma diminuição de 685,8 mm”, diz a meteorologista Danielle Barros Ferreira, do Inmet. Em Parnaíba, no Piauí, a redução chegou a 599,5 mm e em Aracaju, capital de Sergipe, a 505,9 mm. Fora do Nordeste, o decréscimo da precipitação foi da ordem de 50 a 100 mm anuais. No Sul, na parte mais meridional de São Paulo, de Mato Grosso do Sul e de Minas Gerais, além de setores do noroeste e do sudoeste da região Norte, as chuvas apresentaram um aumento relativamente discreto, de 100 a 250 mm anuais no período de 1991 a 2020, ainda segundo dados do Inmet. Mas em algumas localidades houve elevações expressivas de pluviosidade, como em Codajás, no centro do Amazonas, em Bambuí, no centro de Minas Gerais, e em Chapecó, no oeste de Santa Catarina. Nesses municípios, o aumento foi, respectivamente, de 741,9 mm, 590,2 mm e 509,1 mm. O peso da redução ou do aumento do total de chuvas precisa ser relativizado em função das características do clima atual de uma região. Na Amazônia, onde na maior parte das áreas chove mais do que 2 mil mm por ano, uma queda de 100 mm na precipitação ao longo de 12 meses pode ter pouca importância. Numa localidade do semiárido nordestino, isso pode significar uma estiagem muito mais severa. Não há consenso absoluto nas previsões sobre precipitação para o Brasil, nação de dimensão continental, nas próximas décadas, mas as linhas gerais estão bem traçadas. As projeções mais ou menos batem com os dados históricos que mostram a evolução da precipitação em diferentes partes do país. “O risco de secas é o maior problema climático do país e o que impacta mais pessoas”, afirma o meteorologista Gilvan Sampaio, coordenador-geral da área de ciências da Terra do Inpe. “O efeito das mudanças climáticas sobre a temperatura é mais direto e simples do que sobre o regime de chuvas. No Brasil, por exemplo, desconheço lugares em que a temperatura média não esteja subindo, em maior ou em menor escala. A pluviosidade é um fenômeno mais complexo, influenciado de diferentes maneiras por fatores de escala global, regional e local.” Uma certeza no que diz respeito às chuvas é o papel central da Amazônia, que abarca mais da metade do território nacional. Por fornecer uma parte considerável da umidade (via os chamados rios voadores) para as demais regiões do país, como o Centro-Oeste e o Sudeste e o Sul, a maior floresta tropical do planeta atua como uma espécie de ar-condicionado do clima no âmbito regional, da América do Sul. À medida que é desmatada, ela perde progressivamente a capacidade de retirar mais carbono da atmosfera, o que agrava o aquecimento global, e de fornecer vapor de água para que a chuva se forme sobre ela mesma e outras regiões. Antes dos anos 2000, os dados apontavam que a Amazônia enfrentava uma grande seca a cada 20 anos. Neste século, já ocorreram quatro períodos de estiagem extrema e prolongada, quase sempre associados à ocorrência do fenômeno climático El Niño, que esquenta de forma excessiva as águas do centro-leste do Pacífico equatorial e ao aquecimento de Atlântico tropical: a primeira em 2005, a segunda em 2010, a terceira em 2015 e 2016 e a mais recente em 2023-2024. No ano passado, que foi o mais quente em todo o globo e também no Brasil, alguns rios da região Norte atingiram seus níveis mais baixos dos últimos 120 anos.

Um estudo publicado em fevereiro na revista Science projetou que, até 2050, metade da Amazônia poderá atingir um ponto de não retorno em razão das mudanças climáticas e do desmatamento que provocam um estresse hídrico sem precedentes na região. Se isso vier a ocorrer, uma parte considerável da floresta pode virar uma mata degradada, com menos espécies, ou até um cerrado, com poucas árvores e mais gramíneas. De qualquer forma, o impacto seria terrível para o clima local e regional, que se tornaria muito mais quente e seco. O principal autor do trabalho foi o ecólogo Bernardo Flores, que faz estágio de pós-doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

A possibilidade de que parte da Amazônia se torne algo mais próximo de um Cerrado costuma ser chamada de savanização. Um estudo recente sinaliza que, até o fim deste século, os efeitos sobrepostos de uma savanização completa da Amazônia e de um aumento de 4 graus Celsius (°C) na temperatura média do planeta, o cenário mais pessimista previsto pelo IPCC, seriam devastadores. Essa possibilidade foi simulada no Modelo Brasileiro do Sistema Terrestre (Brazilian Earth System Model – BESM), desenvolvido pelo Inpe no âmbito do Programa FAPESP de Pesquisas em Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG). Seus resultados foram comparados com as projeções obtidas em cenários menos radicais também dentro do BESM.

“Cada um desses fatores por si só produziria um aumento da estação seca e uma redução de chuvas em grandes setores da América do Sul”, comenta o climatologista Carlos Nobre, do Instituto de Estudos Avançados da USP, um dos autores do estudo, que saiu em março na Scientific Reports. “Combinados, eles levariam a uma redução de 44% na chuva anual e um aumento de 69% na duração da estação seca na Amazônia.” Nesse cenário, radical, mas não impossível de ocorrer, o fornecimento de umidade da Amazônia para a América do Sul ficaria comprometido, colocando em risco o abastecimento de populações humanas e de atividades que dependem da disponibilidade de água, como a agricultura e a geração de energia hidroelétrica.

No presente, as áreas provavelmente mais vulneráveis a uma diminuição de umidade são as classificadas pelo Inpe e Cemaden como dentro de climas com algum grau de aridez, como as do subúmido seco, do semiárido e do árido. Mesmo sem estar tecnicamente dentro de uma área de deserto, esse é o Brasil que seca antes e mais do que os outros.

Projetos
1.
INCT para Mudanças Climáticas (); Modalidade Projeto Temático; Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG); Pesquisador responsável José Antônio Marengo Orsini (Cemaden); Investimento R$ 5.300.662,72.
2. Transição para a sustentabilidade e o nexo água-agricultura-energia: Explorando uma abordagem integradora com casos de estudo nos biomas Cerrado e Caatinga (); Modalidade Projeto Temático; Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG); Pesquisador responsável Jean Pierre Ometto (Inpe); Investimento R$ 2.133.962,04.

Artigos científicos
Bottino, M. J. et al. .Scientific Reports. 1 mar. 2024
TOMASELLA, J. et al. . Nota técnica do Cemaden e Inpe. nov. 2023
HOFFMAN, G.S. et al. . Scientific Reports.11 jul. 2023.
LÁZARO, W. L. et al. . Acta Limnologica Brasiliensia. 18 set. 2020.