Texto: Ricardo Zorzetto/Revista Pesquisa Fapesp
Imagens de crianças yanomamis desnutridas voltaram a circular no noticiário em janeiro, um ano após o governo federal ter declarado emergência em saúde pública no território ocupado por essa etnia no extremo norte do Brasil e depois de 307 delas terem se recuperado. As cenas chocam por retratarem um problema de saúde grave que persiste entre as populações indígenas décadas após ter sido eliminado no resto do país, onde começa a se consolidar, já na infância, o excesso de peso.“O valor medido pelo Enani-2019 deveria fazer soar o alarme das autoridades públicas brasileiras. Se nada for feito para modificar esse padrão de ganho de peso, uma proporção bem mais elevada dessas crianças deve apresentar sobrepeso ou se tornar obesa na idade adulta”, afirma o pediatra Antônio Augusto Moura da Silva, da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), que analisou o estudo a pedido de Pesquisa FAPESP.
Silva é colaborador de uma pesquisa que, de tempos em tempos, reavalia a saúde de crianças nascidas em Ribeirão Preto (SP) e em São Luís (MA). “Entre os nascidos em 1978 em Ribeirão, 15% tinham excesso de peso aos 10 anos. Aos 40 anos, 74% estavam com sobrepeso ou obesidade. Em São Luís, estamos começando a ver esse efeito nas camadas mais ricas da sociedade”, conta. Outros estudos de caráter regional, representativos da população do Sul e do Sudeste, aquelas em que o Enani encontrou uma proporção mais elevada de crianças com excesso de peso, observam o mesmo efeito.De acordo com o , publicado no suplemento dos Cadernos de Saúde Pública, a proporção de crianças com dieta diversificada foi maior (69,4%) no Sudeste e menor (54,8%) no Norte. Essa frequência também foi mais elevada (76,5%) entre aquelas com mães ou cuidadores com mais de 12 anos de formação escolar e menor (50,6%) entre aquelas cuja mãe ou cuidador havia frequentado a escola por menos de sete anos.
O mais surpreendente, porém, foi o consumo de ultraprocessados, comum em todo o país. Em média, 80,5% das crianças nesse grupo etário já se alimentavam com esse tipo de produto, em geral, biscoitos doces e salgados, farinhas para papinhas, além de iogurtes industrializados e bebidas adoçadas. Novamente, a proporção foi mais elevada (84,5%) na região Norte e, dessa vez, mais baixa (76,1%) na Centro-Oeste. Apenas 8,4% das crianças apresentavam uma dieta minimamente diversificada e que não incluía ultraprocessados. Nem só dados preocupantes emergiram da comparação entre os levantamentos de 2006 e 2019. Nesse período, a situação nutricional das crianças melhorou muito. Um problema cuja frequência diminuiu de modo importante foi a anemia. Causada por carência de micronutrientes ou pela ocorrência de infecções e parasitoses frequentes, ela afeta 40% dos menores de 5 anos no mundo, segundo estimativas da OMS. Crianças com anemia podem sentir cansaço e apresentar baixo rendimento em atividades físicas e intelectuais. Há 40 ou 50 anos, cerca de 60% das crianças brasileiras menores de 5 anos eram anêmicas. Essa proporção, que já havia baixado para 20,5% em 2006, caiu para 10% em 2019.Outra questão de saúde pública amenizada foi a deficiência de vitamina A. Adquirido pela ingestão de alimentos de origem animal e frutas e hortaliças de cor amarela ou laranja (ricos em betacaroteno), esse nutriente é importante para a multiplicação das células e o funcionamento dos sistemas nervoso e imunológico. A deficiência de vitamina A afetava 17,2% dos menores de 5 anos no Brasil em 2006 e 6% em 2019. De um levantamento para o outro, também diminuíram as desigualdades regionais. A diferença nas taxas de anemia e deficiência de vitamina A registradas nas cinco macrorregiões brasileiras se tornou bem menor.
“O país conquistou vitórias importantes nesse período. Normalmente a melhora nesses indicadores demora bem mais tempo”, afirma Moura da Silva, da UFMA. De modo geral, avalia Inês Rugani Castro, da Uerj, o perfil nutricional das crianças brasileiras encontra-se em um nível intermediário. “Estamos melhores do que os países pobres e, em alguns aspectos, piores do que os ricos”, relata. Esses avanços, segundo os pesquisadores, são fruto da estabilização da moeda e do controle da hiperinflação nos anos 1990 e da implementação continuada de políticas públicas que permitiram aumentar a renda das famílias, melhorar o nível educacional dos pais e ampliar o acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS). Vários indicadores socioeconômicos que influenciam a saúde das crianças progrediram entre 2006 e 2019. A proporção de famílias com mães ou cuidadores com mais de 11 anos de formação escolar subiu de 32% para 56%, acesso a água tratada de 79% para 93% e coleta de esgoto de 46% para 75%. A evolução de um indicador, no entanto, intrigou os pesquisadores: o da baixa estatura. Facilmente aferível, a baixa estatura costuma resultar de carência nutricional, infecções repetidas ou falta de estimulação psicossocial vividas por longos períodos. Na saúde pública, é interpretada como um indicador cumulativo de desnutrição. Ela afetava 37,1% dos menores de 5 anos no Brasil em 1974 e seus níveis baixaram nas três décadas seguintes, alcançado a marca de 7,1% em 2007, como registrou o epidemiologista Carlos Augusto Monteiro, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP), no em 2010. De lá para cá, seu nível estacionou em 7%. “O percentual estava relativamente baixo em 2006, mas esperávamos que fosse melhorar. Não melhorou”, conta Castro. Uma possível explicação é o fato de o levantamento de 2019 ter avaliado crianças que nasceram antes e depois do início da crise econômica e da redução de cobertura de programas de assistência social e de saúde observados a partir de 2016. A proporção de crianças com baixa estatura foi menor entre as que nasceram antes da crise (mais velhas) do que entre as que nasceram depois (mais novas). Em cenários de estabilidade, espera-se que a baixa estatura seja mais frequente entre as crianças mais velhas porque elas teriam passado por mais episódios de insegurança alimentar e infecção do que as mais novas. A comparação entre os dois levantamentos também mostrou que as mais velhas do Enani estavam melhores que as mais velhas da PNDS, sinal de melhoria de 2006 para 2019, e que as mais novas do Enani estavam piores que as mais novas da PNDS, sugestivo de que o avanço do período não se sustentou. “Para a taxa do indicador melhorar, o ciclo virtuoso iniciado nos anos 2000 não poderia ter sido interrompido”, explica a nutricionista da Uerj. Uma região do país se desgarra das demais em alguns quesitos: o Norte. Com 17,3 milhões de habitantes (8,5% da população brasileira) e uma área equivalente a quase metade do território nacional, a região Norte é uma das mais pobres, com população de menor escolaridade e mais difícil acesso ao sistema público de saúde. Lá, a frequência de baixa estatura e de anemia ficaram, respectivamente, em 8,4% e 17%. “O Enani representa um grande avanço de qualidade em relação aos levantamentos anteriores. Mas seu desenho não permite caracterizar as diferenças entre as populações de ambiente urbano e rural ou que habitam áreas remotas, como ribeirinhos, quilombolas e indígenas”, conta a nutricionista Marly Cardoso, da FSP-USP.Ela coordena um estudo que acompanha a saúde de pouco mais de 1 mil crianças nascidas em 2015 em Cruzeiro do Sul, cidade de 90 mil habitantes no interior do Acre, próximo à divisa com o Peru. Lá, Cardoso e seus colaboradores têm observado algumas condições mais graves e outras diferentes do que a registrada no resto do país. Em Cruzeiro do Sul, 39% das mães estavam anêmicas no parto e 42% das crianças tinham anemia ao fim do primeiro ano de vida. A taxa caiu à medida que as crianças cresceram e era de 5,2% aos 5 anos, segundo os dados apresentados em novembro em um da Revista de Saúde Pública. Já a proporção de crianças com baixa estatura aos 5 anos (2,3%) era bem inferior à média nacional, enquanto a daquelas com excesso de peso era superior (12,7%).
O que em geral não vai bem no país pode estar ainda pior entre as populações indígenas. Em 2008 e 2009, Bernardo Horta, da UFPel, e colaboradores realizaram o primeiro – e único – levantamento nacional sobre saúde e nutrição indígena. Eles analisaram as condições sanitárias de cerca de 12 mil pessoas em 113 comunidades de todo o país e apresentaram os resultados em 2013 na revista . Entre as crianças de até 5 anos, 51,2% tinham anemia e 25,7% baixa estatura – essas proporções eram, respectivamente, 66,4% e 40,8% entre os indígenas da região Norte. “Para melhorar o quadro nacional, em especial da região Norte e das comunidades mais afastadas”, afirma Cardoso, “é necessário que se tome a decisão política de implementar e ampliar a cobertura de programas para promoção da saúde, infraestrutura sanitária e aumento de renda, mas com compromisso de continuidade dessas ações”.Projeto
Estudo MINA materno-infantil no Acre: Coorte de nascimentos da Amazônia Ocidental brasileira (); Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora responsável Marly Augusto Cardoso (FSP-USP); Investimento R$ 3.440.351,93.
Artigos científicos
DE CASTRO, I. R. R. et al. . Cadernos de Saúde Pública. v. 39, suplemento 2. 23 out. 2023.
GONÇALVES, H. et al. . International Journal of Epidemiology. abr. 2019.
LACERDA, E. M. A. et al. . Cadernos de Saúde Pública. v. 39, suplemento 2. 20 out. 2023.
MONTEIRO, C. A. et al. . Bulletin of the World Health Organization. v. 88, n. 4, p. 305-11. abr. 2010.
DE CASTRO, I. R. R. et al. . Cadernos de Saúde Pública. v. 39, suplemento 2. 28 ago. 2023.
CARDOSO, M. A. et al. . Revista de Saúde Pública. v. 57, suplemento 2. 30 nov. 2023.
COIMBRA JR, C. A. E. et al. . BMC Public Health. 19 jan. 2013.
CARVALHO, C. A. et al. Excess weight and obesity prevalence in the RPS Brazilian Birth Cohort Consortium (Ribeirão Preto, Pelotas and São Luís). Cadernos de Saúde Pública. v. 37, n. 4, e00237020.