Ciência

Ancestral das plantas recebeu genes de fungos e bactérias

Características importantes para a diversidade e o sucesso evolutivo parecem ter origem direta em DNA obtido pelo ancestral vegetal há pelo menos 600 milhões de anos
Imagem: Alexandre Affonso / Revista Pesquisa FAPESP

Texto: Laura Tercic/Revista Pesquisa Fapesp

Genes importantes para o mecanismo de crescimento e divisão celular das plantas parecem ter migrado a partir de outros grupos de seres vivos, sem relação de ancestralidade. Os fragmentos de DNA teriam sido adquiridos de forma desconhecida, há pelo menos 600 milhões de anos, por algas carófitas, o grupo de algas verdes que deu origem às plantas terrestres. Uma pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) revelou os organismos doadores, conforme relatado em artigo publicado no final de fevereiro na revista científica New Phytologist.

A pista sobre a apropriação de genes de fora da linhagem direta apareceu de forma acidental: enquanto investigavam as sequências genéticas de enzimas que degradam carboidratos nas paredes celulares vegetais, pesquisadores se deram conta de que elas surgiram repentinamente no caminho evolutivo – algas carófitas possuíam os genes, mas outras algas aparentadas, não. “Como a chance de eles terem aparecido ao acaso, por mutações aleatórias, é mínima, decidimos então buscar em espécies mais distantes”, conta o geneticista Luiz Eduardo Del Bem, da UFMG. A equipe então obteve os dados genéticos, de todas as espécies de seres vivos que não fossem plantas (de bactérias a rinocerontes), disponíveis no banco de genomas do Centro Nacional de Informação Biotecnológica (NCBI), dos Estados Unidos. Depois de meses de procura e comparação, encontraram os mesmos genes que codificam as enzimas em algumas espécies de fungos e de bactérias. O achado evidencia o fenômeno biológico conhecido como transferência horizontal de genes. Outro resultado que chamou a atenção do grupo mineiro é que, ao longo do tempo e da evolução das linhagens de plantas, os genes adquiridos por transferência sofreram uma série de duplicações (de 20 genes iniciais para 400 em alguns grupos vegetais atuais) e uma mudança radical no papel de suas enzimas. Originalmente responsáveis pela digestão de carboidratos como fonte de energia para as células dos microrganismos, hoje essas enzimas atuam tanto na remodelação da parede celular das plantas durante a replicação das células quanto na proteção contra fungos e patógenos, ao digerir a quitina que compõe os invasores.
Imagem: Alexandre Affonso / Revista Pesquisa FAPESP

Como a parede celular está envolvida diretamente no crescimento e suporte estrutural das plantas, seu surgimento foi essencial para a transição da vida na água para a do ambiente terrestre. Por essa razão, Del Bem considera que a aquisição genética vinda da troca entre microrganismos tenha sido crítica para o curso da evolução e da diversidade biológica que conhecemos hoje. “Esses são impactos muito basais na história da diversificação das espécies que realizam fotossíntese e, portanto, também em todos os ecossistemas e formas de vida terrestres que dependem dela.” A transferência horizontal de genes desafia a noção de que a vida evolui em formato de árvore, como postulava Charles Darwin (1809-1882), com características passando de uma geração à seguinte dentro de uma mesma linhagem. A transmissão entre grupos diferentes de organismos seria ilustrada com mais propriedade na forma de uma teia interconectada. Se até cerca de uma década atrás a troca de genes era vista como rara exceção e quase sempre exemplificada por casos de vírus e bactérias passando material genético para seus hospedeiros, hoje se acumulam exemplos em espécies mais complexas e com parentesco mais distante.

Na maior parte das vezes não se trata de uma transferência aleatória, por envolver algum contato entre os organismos – fora do contexto reprodutivo. A bióloga Suzana Alcantara, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que pesquisa diversificação de plantas, cita um caso: a mosca-branca (Bemisia tabaci), que, durante a evolução, se apossou de genes de plantas que lhe permitiram neutralizar as toxinas com que os vegetais se defendem contra insetos. Outro exemplo, segundo a geneticista Nathalia de Setta, da Universidade Federal do ABC (UFABC), é o de genes de serpentes incorporados pelo ancestral dos bovinos atuais por intermédio de carrapatos. E ainda há indícios da passagem de genes de serpentes para sapos em Madagascar, provavelmente também mediada por parasitas em comum. Nos dois casos, trata-se de um elemento de transposição, que ao fazer réplicas de si mesmo se instala em diferentes partes do genoma, proporciona variabilidade genética e a possibilidade do surgimento de novas funções.

Para ambas as pesquisadoras, o acúmulo de sequenciamento completo de genomas em bancos de dados nos últimos anos e a facilidade de acesso a essas informações estão por trás da crescente aceitação na comunidade científica sobre a importância desse fenômeno no processo evolutivo. De Setta se surpreendeu ao identificar genes “importados” nas moscas drosófilas que estudava no doutorado, o que não era o objetivo inicial da pesquisa. Ainda assim, ela defende que se esgotem outras possibilidades antes de apontar para a transferência horizontal para explicar a presença de um gene inesperado.

Relógio molecular

O método de comparação que os pesquisadores da UFMG usaram também permitiu calcular o momento mais provável da incorporação genética. Cerca de 23 genes diferentes, de origem bacteriana e fúngica, tornaram-se parte do DNA das algas carófitas entre 750 milhões e 550 milhões de anos atrás, durante o Pré-Cambriano. O ambiente terrestre nesse período pode ser imaginado como um cenário rochoso, sem vegetação ou animais, habitado por comunidades de microrganismos. Para Del Bem, essas microflorestas, formadas por bactérias, algas, protozoários e fungos unicelulares, teriam sido as pioneiras em colonizar o espaço fora d’água e proporcionado condições ideais para transferências genéticas, já que, para que isso ocorra, é preciso que as células estejam fisicamente próximas. No convívio diário e próximo com outros organismos no intestino, nas mucosas e na pele, sejam eles aliados ou causadores de doenças, trocas de genes entre as células humanas e as dessas populações podem ser frequentes. “Isso reforça a visão de que o material genético é muito mais fluido no sentido horizontal do que imaginávamos”, ressalta Alcantara. “Até que ponto isso afeta a evolução das linhagens ainda é um ponto que pode ser mais bem compreendido, especialmente se pensarmos nessa interação constante entre os organismos.”
Imagem: Alexandre Affonso / Revista Pesquisa FAPESP
Estar próximo é a condição primordial, mas os mecanismos exatos de como em cada um desses casos o material genético foi parar em outro organismo permanecem incógnitos. Há formas conhecidas e observadas na natureza (que inclusive inspiraram as primeiras técnicas para produção de transgênicos), com bactérias e vírus como veículos dos fragmentos de DNA ou RNA. Outras possibilidades incluem as trocas que ocorrem entre as mitocôndrias e o núcleo das células, e a absorção direta de material genético liberado no meio pela morte de alguma célula.

A botânica norte-americana Pamela Soltis, curadora do Museu de História Natural da Flórida e reconhecida internacionalmente por pesquisar os padrões que geram diversidade biológica, considera que levar em conta os impactos da transferência horizontal é relevante nos estudos de evolução das plantas. “É um processo realmente fascinante, porque o novo material genético fornece oportunidades potencialmente valiosas para adaptações da espécie receptora”, reflete, em entrevista por e-mail a Pesquisa FAPESP. Ela, porém, reforça a importância de se explorar como elas ocorreram nos casos que seguem sendo descobertos.

Soltis alerta que, após a transferência, entram em ação outros fatores evolutivos, igualmente essenciais para entender determinada característica nas espécies. “Por exemplo, tanto as duplicações quanto a mudança de função pelas quais os genes de fungos e bactérias passaram, depois da incorporação pelas algas, contribuíram para a diversificação das plantas no ambiente terrestre”, conclui.

Artigo científico
KFOURY, B. et al. . New Phytologist. v. 242, n. 2, p. 809-24. 28 fev. 2024.

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