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Adeus, Trivela

Se hoje cobre-se futebol com um mínimo de qualidade no Brasil, muito disso é mérito do jornalismo concebido pela Trivela original

Faz mais ou menos 18 anos que a Paula Rizzo, minha prima, me apresentou para o Zé, que por sua vez me apresentou para o Carlão, irmão dele, que era um dos três sócios de um site de futebol inacreditavelmente parecido com tudo o que eu tinha pensado em fazer quando pensei em criar um site de futebol. Só que 200 vezes melhor.

O Carlão tinha se juntado fazia já algum tempo ao Cassiano e ao Tomaz, fundadores da Trivela. Quando nos conhecemos, a única coisa que tínhamos em comum era o “Football Manager”. Eu gostava muito de futebol, mas estava, como aliás continuei estando para sempre, anos luz atrás deles em conhecimento e informação.

Eles eram jornalistas formados pela ECA e pela Metodista, enquanto eu tinha feito um ano de Jornalismo na PUC e depois o trainee na Folha (onde tive a sorte de passar alguns meses sob a supervisão do grande Melchíades Filho, diga-se).

Eles sabiam exatamente o que eles queriam, enquanto eu tinha uma vaga ideia. E eu tinha um pouco de dinheiro e “cabeça pra negócios”, que eles não tinham.

O que eles queriam só não tinha modéstia. Queriam fazer um jornalismo esportivo no Brasil totalmente diferente do que era feito, com informação de qualidade e variedade de coberturas.

Queriam transformar uma indústria que tinha um PVC para cada 20 curiosos metidos a boleiro e falavam só o que a torcida queria ouvir — e raramente tinham ideia do que estava acontecendo dentro e fora de campo.

Queriam, os meninos (na época éramos) que a cultura do futebol passasse a ser assunto tão importante quanto o futebol. E queriam desmascarar a quantidade enorme de fraudes que habitavam o mercado — e foi nisso aí que eles me pegaram imediatamente.

Fiquei dez anos sem conversar com o Cassiano por teimosias nossas — ele não vai concordar que foram teimosias, já aviso. Voltamos a falar há 5 anos, quando ele estava saindo do Brasil. Neste ano nos encontramos na cidade em que ele está morando. E eu repeti pra ele o que venho repetindo para todo mundo que tem paciência de me escutar falando sobre o assunto: a Trivela nunca deu dinheiro pra nós, não deixou nenhum de nós famoso — embora tenha ajudado outros de nós a chegar lá — e vai acabar tendo uma morte melancólica sendo tudo aquilo que nós queríamos combater em 2005 (mais sobre isso daqui a pouco).

Mas ela deu, sim, muito certo. E deu muito certo porque, de diversas maneiras, realizou tudo o que se propôs. Esse mérito não é meu, então eu posso falar com muita tranquilidade: a Trivela revolucionou o jornalismo esportivo brasileiro. Obrigou ele a mudar, “puxou” os grandes e inspirou os pequenos.

Se hoje cobre-se futebol com qualidade no Brasil, muito disso é mérito daquilo que o Cassiano e o Tomaz criaram, que o Carlão ajudou a dar forma, e que eu consegui ter a habilidade e sorte de escolher as pessoas certas para levar adiante por tanto tempo e de forma tão fiel a tudo aquilo que foi desenhado em 1998.

A Trivela não foi só o primeiro site a dizer que a história de que o estádio Giuseppe Meazza tinha um nome quando jogava o Milan e outro quando jogava a Inter era uma bobagem. Não foi só o primeiro a enfrentar o senso comum do “jornalismo entretenimento” e se colocar contra a visão torcedora do “time x é o Brasil na Libertadores” (um dos episódios, aliás, que me indispôs com o Cassiano, e nesse caso ele tinha razão).

Foi também, um pouco mais tarde, também por influência do Leandro Beguoci, que sacou que esse “DNA Trivela” tinha outras derivações, o primeiro site a exigir o fim da homofobia e do racismo no ambiente do futebol. A transformar isso em pauta frequente, em causa a ser perseguida.

Em algum momento dessa história, eu me afastei um pouco do site pra editar a Revista ESPN. Por indicação da Ana Estela, minha grande professora de jornalismo (então coordenadora do trainee da Folha), entrevistei para a revista um jovem repórter, que não tinha ainda a experiência que a gente precisava ali.

Minha intuição, porém, ou talvez a minha enorme sorte, me impediram de perder o cara que ia ser tão importante na vida da Trivela por tantos anos. “Cara, acho que aqui não cabe, mas estamos contratando na Trivela também. Posso te pedir pra bater um papo com o Bertozzi”? O Felipe Lobo foi, e o Bertozzi, que não é besta, contratou ele na hora.

A redação da Trivela na época tinha ninguém menos que Leonardo Bertozzi, Ubiratan Leal e Gustavo Hofman na mesma redação — e sem aquele bando de malas que tem com eles na ESPN (desculpem amigos, eu não resisti). O Lobo, porém, não se fez de rogado, aprendeu o que podia com todos. E, com a saída deles, não demorou pra ocupar os espaços deixados. Em algum momento dessa trajetória, eu admito que não me lembro mais exatamente a ordem, se juntaram a ele ninguém menos que Leandro Stein e Bruno Bonsanti.

(Um parênteses importante aqui: quando eu falo na “minha” habilidade de achar esses talentos, estou puxando para mim um mérito que é meu só em pequena escala. Quem contratou quase todos esses caras foi o Ubiratan. Meu mérito foi contratar o Ubiratan. Mas quem me indicou ele foi o Carlão. Que também indicou o Bertozzi. E contratar a Mari, e depois virar sócio dela também ajudou bastante.).

Eu disse aí acima que a redação da Trivela teve simultaneamente Bertozzi, Gustavo e Ubiratan. E houve um momento em que além deles tinha Cassiano, Tomaz e Carlão — e esses três também formaram um time sob o Paulão Martin, hoje editor deste Giz Brasil.

Não preciso nem mencionar o tamanho desses nomes – e asseguro que os que não ficaram famosos eram no mínimo tão bons quanto os outros. E mesmo assim nunca houve na Trivela um time como Lobo, Bonsa e Stein. Um “Dream Team” de qualidades e competências complementares, mas principalmente de valores fundamentalmente parecidos.

Pois bem: há alguns anos eu percebi que não tinha mais como levar a Trivela adiante, e que minha contribuição era pequena demais pra justificar que o site continuasse sendo “meu”. E propus a eles que continuassem a levar o trabalho, mas que agora seria deles. E eles, pra minha sorte e gratidão, aceitaram.

O que eles fizeram com a Trivela é de domínio público. Qualquer um que goste de futebol e não só do seu próprio time sabe. O que a maioria não sabe é como eles fizeram isso. Porque quem olha aquele site não pode achar que ele era feito por menos de 10 pessoas. Mas era. Precisamente por três. Três caras que, em um determinado momento, passaram a ser responsáveis não só pelo conteúdo do site, mas também por todo o resto. Absolutamente tudo. Eu só acredito que eram só os três porque eu vi.

Não há conteúdo de futebol em português em nenhum lugar do planeta com a qualidade do conteúdo produzido pelo trio Lobo-Bonsa-Stein. Desde as notas mais comuns, de resultado de jogo até os perfis mais fora do usual e profundos produzidos pelo Stein. Não tem em nenhum outro lugar.

E agora não tem mais na Trivela também. E com isso, morre a Trivela. Morre a Trivela que o Cassiano e o Tomaz sonharam lá atrás, que nós transformamos em realidade e que os três lapidaram e transformaram em uma jóia sem igual, assim como morre o mais antigo site independente de futebol do Brasil.

Morre para ser engolido por uma rede de sites genéricos, que já polui o site com conteúdos genéricos e obviamente não tem a menor condição de fazer nada melhor do que o óbvio — ainda que exista uma equipe que tente, a direção não permitirá.

E é assim que é. A Trivela foi gigante, mas precisava acabar até pra deixar de ser o peso gigantesco que era sobre os ombros dos três. O que todos nós fizemos, nós sabemos, e nos orgulhamos muito. O que os três continuarão a fazer vai continuar sendo gigante, quem sabe ainda mais interessante, e eu estou ansioso para conhecer.

Obrigado por tanto Lobo, Bonsa e Stein. Embora eu seja o mais velho, tive com vocês numerosas aulas de conduta, caráter e competência.

Obrigado por tanto, Trivela. Descanse em paz.

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