A barreira do idioma na comunicação científica
Texto: Fabrício Marques/Revista Pesquisa Fapesp
Um time de pesquisadores de 10 países analisou as políticas de publicação de 736 revistas científicas de ciências biológicas e identificou barreiras impostas a autores que não têm o inglês como idioma nativo. Alguns desses obstáculos são bastante conhecidos. Como o inglês é a língua franca da ciência, não é incomum que editores de revistas sugiram aos autores a contratação de serviços de empresas especializadas em edição ou tradução de textos científicos para assegurar que o conteúdo de um manuscrito esteja expresso de forma clara e seguindo a norma culta inglesa – e isso amplia os custos de publicação, prejudicando principalmente autores de países pobres.Também há barreiras menos tangíveis. Das 736 revistas analisadas, só duas delas, Nature e Nature Plants, declararam categoricamente em suas diretrizes que um paper não será rejeitado apenas porque o autor não se expressa de modo satisfatório em inglês – o essencial é avaliar a pertinência e a qualidade de seu conteúdo. Além de analisar regras de publicação, o grupo entrevistou editores-chefes de 262 desses periódicos – e só 6% deles instruíam revisores a não rechaçar preliminarmente artigos em inglês com problemas de gramática, clareza e fluidez. Cerca da metade dos editores sugeria a autores o uso de serviços on-line e gratuitos de edição em inglês para correção gramatical ou os encaminhava a tutoriais na internet. Só 1% das revistas ofereceram assistência por meio de programas de mentoria gratuitos. Uma novidade do estudo, publicado no repositório EcoEvoRxiv e ainda não revisado por pares, foi apontar exemplos de revistas que fornecem suporte a pesquisadores cujos manuscritos precisam de ajustes no idioma. Periódicos mantidos por sociedades científicas tendem a ser mais inclusivos. A Sociedade para o Estudo da Evolução, sediada nos Estados Unidos, dispõe de um programa de mentoria em inglês para apoiar quem submete trabalhos à revista Evolution. De forma gratuita, editores com experiência em escrita científica podem sugerir mudanças leves e discutir diretamente com os autores maneiras de tornar o manuscrito mais claro. Os autores podem solicitar o suporte antes de apresentar o artigo ou durante o processo de revisão.
Outro exemplo é o do Journal of Field Ornithology, vinculado à Associação dos Ornitólogos de Campo, uma organização científica norte-americana que conecta autores que não têm o inglês como língua primária com voluntários que podem ajudá-los a aperfeiçoar seus textos. A Sociedade Americana dos Mamalogistas criou um esquema de parceria gratuito, o ASM Buddy System, no qual zoólogos especializados em mamíferos ajudam a melhorar o nível de inglês de manuscritos, enquanto o Journal of Ecology, da Sociedade Ecológica Britânica, disponibiliza um serviço gratuito de revisão por inteligência artificial, o Writefull. O apoio aos autores é bem recebido. Germana Barata, pesquisadora do Laboratório de Estudos Avançados de Jornalismo da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), disse à revista Nature que teve uma boa experiência ao publicar em inglês no periódico Cultures of Science. “As correções e edições não mudaram em nada minhas ideias, a essência do que eu estava escrevendo ou o estilo”, diz ela. “Isso não acontece em muitas outras publicações.” O estudo propõe um conjunto de ações para enfrentar as barreiras linguísticas, como um compromisso público dos periódicos com a avaliação justa do conteúdo de papers, mesmo os que têm problemas de escrita, ou a oferta de serviços gratuitos para tornar mais legíveis em inglês artigos com conteúdo relevante.
“Nosso trabalho concluiu que os periódicos podem cumprir um papel dual. Ao mesmo tempo que são uma fonte de barreiras linguísticas, também podem ajudar os autores a enfrentá-las”, disse o biólogo brasileiro Pedro Albuquerque Sena, coordenador técnico do Centro de Pesquisas Ambientais do Nordeste (Cepan), instituição privada de pesquisa sediada em Recife, um dos coautores do estudo. Sena faz parte de uma comunidade de ecólogos conectada pelo X, o antigo Twitter, que costuma expor e discutir embaraços sofridos por pesquisadores de países em desenvolvimento ao submeter seus papers a revistas de alto impacto. As queixas incluem eventuais percalços linguísticos, mas também a sensação de que há injustiça e discriminação no rigor com que revisores desqualificam estudos como mal escritos em inglês ou pouco originais. Na rede social, Sena encontrou um convite para pesquisadores interessados em levantar e analisar as políticas de publicação de revistas em ecologia e se juntou a esse projeto, juntamente com colegas de países como Austrália, Reino Unido, Estados Unidos, Indonésia e República Checa.
Pesquisadores de ciências ambientais que não tinham o inglês como primeira língua levavam o dobro do tempo dos falantes nativos para preparar trabalhos no idiomaA equipe foi montada pelo autor principal do estudo, o biólogo japonês Tatsuya Amano, pesquisador do Centro de Ciências de Biodiversidade e Conservação da Universidade de Queensland em Brisbane, Austrália. Amano é um interessado no tema do viés linguístico porque se sente afetado por ele. Deixou o Japão, em 2011, para trabalhar no Reino Unido e depois na Austrália, onde foi desafiado a produzir ciência exclusivamente em língua inglesa. Ainda hoje ele diz ter dificuldades em escrever artigos, preparar palestras e, em especial, fazer apresentações em conferências em inglês. “Levo muito tempo e preciso dedicar muito esforço para fazer tudo em inglês”, contou em entrevista à Australian Broadcasting Corporation, empresa pública de radiodifusão australiana. “As barreiras linguísticas criam ansiedade, desconforto, constrangimento. É preciso ser corajoso para enfrentá-las.”
Em um outro trabalho publicado em julho na revista PLOS Biology, Amano e colaboradores entrevistaram 908 pesquisadores da área de ciências ambientais. Os que não tinham o inglês como primeira língua demoravam até o dobro do tempo gasto por falantes nativos para preparar artigos ou apresentações em inglês. Eles também apontaram uma probabilidade 2,5 vezes de ter trabalhos rejeitados por periódicos e 12,5 vezes mais chance de serem solicitados a fazer revisões antes da publicação. Por falta de confiança na comunicação em inglês, um terço deles afirmou já ter desistido de ir a conferências internacionais – entre os que participaram, metade informou ter evitado fazer apresentações orais.
Revistas do Brasil que publicam em inglês pedem para os autores enviarem seus artigos a serviços especializados de revisão, que fornecem certificados sobre a conformidade do textoRode diz que, em sua experiência como pesquisador, enxergou sinais de preconceito com a ciência produzida em países em desenvolvimento nas críticas à qualidade do inglês dos manuscritos. Anos atrás, ele fez um teste: submeteu a uma revista internacional um artigo de sua autoria em inglês que havia sido revisado por um serviço profissional. Propositalmente, não anexou o certificado de revisão. “O artigo foi devolvido imediatamente com um aviso de que havia problemas de clareza e de gramática e necessitava de revisão. Interpelei o editor: disse que o manuscrito tinha sido revisado, sim, enviei o certificado e pedi que apontasse onde havia encontrado problemas, para que eu pudesse falar com a empresa e pedir de volta os US$ 120 que havia gasto. O editor pediu desculpas, disse que foi um engano e que a revisão não era mesmo necessária”, narra.
A bióloga Marcia Triunfol, que já trabalhou como editora da revista Science e é uma especialista em escrita científica, vê certos exageros na forma com que a proficiência em inglês é cobrada de autores brasileiros. “Uma vez, em um workshop que organizei em São Paulo, um pesquisador de origem norte-americana disse que, enquanto os brasileiros não aprendessem a diferença entre show e demonstrate, não conseguiriam escrever bons artigos em inglês. Fiquei chocada, porque não vejo importância nisso para avaliar se um artigo tem qualidade”, diz a bióloga, que é fundadora da Publicase, empresa que desde 2007 oferece serviços de tradução e de revisão de artigos e organiza oficinas e cursos de treinamento para orientar pesquisadores e estudantes em técnicas de escrita científica. Atualmente vivendo em Portugal, a pesquisadora não vê esse tipo de cobrança nem de preocupação com o problema entre autores europeus que têm o inglês como segunda língua.
Para ela, o desafio mais complexo não é tanto promover a proficiência em inglês, que vem melhorando nos últimos anos, mas treinar estudantes e jovens pesquisadores em escrita científica. “Durante a pandemia, fizemos um treinamento virtual por Zoom para pós-doutorandos da Universidade Harvard. As dúvidas em relação a como escrever um artigo científico eram as mesmas dos workshops com pesquisadores brasileiros”. Segundo ela, a capacitação oferecida pelas universidades em geral é improvisada: “O ideal seria que houvesse professores especializados em técnicas de comunicação científica e não apenas pesquisadores que compartilham sua experiência com os alunos”. Triunfol considera que em breve o problema deixará de ter as feições atuais. Para ela, as ferramentas de tradução e edição baseadas em inteligência artificial poderão cumprir um papel central para ajustar a escrita de pesquisadores não falantes em inglês. “Nos últimos anos, com a introdução de softwares de auxílio à tradução, observo que a qualidade da escrita científica melhorou. Mais recentemente, por conta do ChatGPT, percebi uma queda na procura por serviços de tradução e revisão em minha empresa, o que considero positivo.” A editora diz que é possível usar a inteligência artificial na correção da escrita científica de forma ética. “Como o objetivo é corrigir e aperfeiçoar um texto já escrito pelo próprio pesquisador, praticamente não há o perigo de que essas ferramentas criem situações de plágio”, afirma.