A arte e o legado do trágico Stu Sutcliffe, único 5º Beatle de verdade

Baixista foi membro oficial da banda de Liverpool entre 1960 e 1961. E, fora dos Beatles, um artista plástico talentoso
Os Beatles foram um quarteto durante sua carreira em discos (1961-1970), mas até hoje é comum chamar de “5º Beatle” alguém muito próximo deles. Porém, só houve um único 5º Beatle de verdade na face da terra: Stu Sutcliffe, baixista e membro oficial entre 1960 e 1961. E, fora da banda, um artista plástico talentoso que não teve tempo de se consagrar como um dos grandes pintores figurativos e abstratos britânicos.

A semana de abril tem dois fatos cruciais para as biografias de Stu e dos Beatles. Em 10 de abril de 1962, o ex-baixista morreu de hemorragia cerebral causada por aneurisma em Hamburgo, então Alemanha Ocidental, onde morava havia menos de um ano com sua noiva alemã, a fotógrafa Astrid Kirchherr.

Três dias depois, os Beatles chegam de trem a Hamburgo para sua penúltima temporada de shows nos clubes da zona (em mais de um sentido) de Reeperbahn. São recebidos, conforme combinado, pelos amigos locais na estação. Lá está Astrid Kirchherr, que clicou as primeiras fotos de portfólio do grupo de Liverpool na primeira visita deles, em 1960. Mas Stu não está. Não havia WhatsApp, não havia internet, não havia celular para avisar a tempo. Os Beatles já estavam em trânsito desde Liverpool no momento em que Stu morreu. O que também tornava inútil enviar uma carta, um telegrama ou ligar para um telefone fixo.

Astrid deu a notícia da morte pessoalmente na plataforma da estação. Todos ficaram abalados, mas John Lennon desmoronou. Ele e Stu eram melhores amigos e almas gêmeas em artes (Stu era melhor), música (John era melhor), jogos de palavras e humor (empate).

Na casa em que Stu e Astrid moravam, a jovem noiva viúva, mesmo com toda dor que sentia, teve o reflexo profissional de fotografar Lennon sentado no ateliê de Stu, arrasado, olhando para o nada. Por acidente ou não, Astrid fez uma dupla exposição em que o rosto de John encobre seu corpo inteiro como uma névoa – ou um espírito.

Nome, franjas, etc

Astrid e John estavam ali naquele momento porque, no final de 1959, o jovem artista faminto Stuart Sutcliffe foi selecionado para participar de uma exposição respeitável e vendeu um de seus quadros por 90 libras (em 2023, valor equivalente a cerca de 2 mil libras, ou 12 mil reais). Stu sentou naquele dinheiro até maio de 1960. Depois de muita insistência, John Lennon e Paul McCartney convenceram o amigo a comprar um contrabaixo e um amplificador, aprender pelo menos o básico e entrar para a banda. John e Paul queriam que seu conjunto formado nos tempos de colégio se tornasse mais profissional. E o contrabaixo Höfner President 500/5 que Stu adquiriu era um passo para essa evolução na carreira. Até então, o trio de guitarristas John, Paul e George Harrison dividiam um único amplificador e quase sempre se viravam sem um baixista no palco. A entrada de Stu mudou várias coisas na banda que estava sem nome fixo naquele momento. Já tinha sido The Quarrymen (por causa do colégio Quarry em que Lennon estudava) e Johnny and the Moondogs. Numa noite de conversa maluca cheia de brincadeiras com palavras, John e Stu pensaram em imitar os Crickets (grilos) do cantor Buddy Holly e adotar o nome de outro inseto, como beetle (besouro). Como adoravam distorcer palavras e eram leitores vorazes, mudaram uma letra na palavra em homenagem à rebelde Geração Beat da literatura americana. Ficou The Silver Beatles (Os “Bezouros” Prateados, se formos trocar uma letra também na tradução para o português).

Naquele mesmo maio, The Silver Beatles tocaram para o empresário Larry Parnes em Liverpool para ver se conseguiam shows. Uma foto mostra Stu tocando de lado, quase de costas, para esconder que sabia tocar meramente o básico mais básico – e, para isso, sangrava seus dedos ao praticar.

Temporada alemã

O grupo acabou contratado para uma temporada de três meses na cidade portuária de Hamburgo, tocando longas horas num clube de reputação duvidosa chamado The Indra na avenida Reeperbahn, no bairro de Saint Pauli, que era repleto de marinheiros, mafiosos, prostitutas, travestis, turistas, bebuns e curiosos.

A temporada alemã começou no meio de agosto e o supérfluo Silver foi abolido. Doravante, a banda seria apenas The Beatles. Logo nos primeiros dias, o designer gráfico Klaus Voormann foi perambular pelo Reeperbahn depois de brigar com a namorada Astrid Kirchherr. Klaus entrou por acaso no Indra e foi hipnotizado pelo rock’n’roll barulhento e indisciplinado dos Beatles. Encantou-se a ponto de levar Astrid para vê-los na noite seguinte. O casal destoava de tudo. Vestiam-se de preto, usavam cortes de cabelo em franja iguais e afetavam um tédio existencialista na postura. O tédio de Astrid acabou imediatamente. Ela apaixonou-se à primeira vista por Stu e logo os dois começaram a namorar. Klaus perdeu a amada mas não deixou de continuar amigo de Astrid e Stu. Também não saiu mais da órbita dos Beatles. Foi ele quem desenhou a capa do álbum “Revolver” em 1966. E, como músico, tocou contrabaixo em álbuns-solo de Lennon, Harrison e do baterista Ringo Starr. Em poucas semanas, a noção artística de Astrid rendeu a primeira sessão de fotos dos Beatles digna de ser classificada como profissional. O grupo topou adotar roupas pretas de tecido, quando não de couro, desistindo dos terninhos de roqueiros dos anos 1950 que usavam. Outra influência de Astrid seria convencer Stu a trocar o topete roqueiro pelo penteado de franja. Logo John, Paul e George se renderam ao corte “moderninho”. O corte que, quatro anos depois, será o grande símbolo visual da Beatlemania mundial.

Em outubro, a coisa degringolou. Paul e George foram extraditados (o primeiro por iniciar um incêndio, o segundo por ser menor de 18 anos), e John, Stu e o baterista Pete Best voltaram a Liverpool porque não teriam como se sustentar sem os shows.

100% artista plástico

Em todo caso, retornaram a Hamburgo para mais diversão em 1961, quando George Harrison já era maior de idade. Sempre ciente de que seu futuro estava nas artes plásticas e não na música, Stu amadureceu a ideia de deixar os Beatles para morar com Astrid em Hamburgo. Em maio de 1961, os Beatles retornaram à Inglaterra sem Stu. Paul McCartney assumiu o contrabaixo para se consagrar como um dos melhores nesse instrumento na história da música pop. E Sutcliffe passou a dedicar-se a suas telas e pincéis em tempo integral. Cada um no que melhor rendia. A decisão de Sutcliffe foi sábia. Nascido em Edimburgo, na Escócia, em 23 de junho de 1940 mas criado na inglesa Liverpool a partir dos 3 anos de idade, Stuart Sutcliffe demonstrou interesse pela arte logo cedo. Na hora de escolher uma faculdade, optou pelo Liverpool College of Art. Logo passou a ser visto pelos professores como o aluno mais promissor da escola. Seu colega John Lennon tinha aptidão para desenho, mas artisticamente estava muito atrás de Stu, que até ajudava o amigo com aulinhas e orientações para provas. Às vezes figurativo, às vezes abstrato, Sutcliffe foi moldando seu estilo. É curioso ver os dois auto retratos que fez na pequena compilação de suas telas que mostramos abaixo:

Para seguir melhorando, Stu se matriculou em 1961 na Hamburg State School of Art e teve aulas com o professor escocês Eduardo Paolozzi, grande escultor e pintor que antecipou a Pop Art americana em alguns anos. “Se vivesse, Stu poderia facilmente ter sido O Beatle. Tinha imaginação, era super inteligente e aberto a tudo”, disse Paolozzi, de acordo com um ensaio sobre Sutcliffe publicado em 2022 na revista americana “The New Yorker”. Tudo parecia muito bem, mas foi em 1961 que Stu começou a ter enxaquecas horríveis, de dor intensa, que parecem ter ligação direta com a hemorragia fatal no ano seguinte. Vários biógrafos dos Beatles especulam que essas dores foram consequência de golpes na cabeça que Stu sofreu numa briga de rua com John. Ou teria sido chutado na cabeça enquanto estava caído ou ela teria se chocado brutalmente com uma parede com um empurrão de um adversário. Essa versão dos golpes na cabeça foi endossada no filme “Backbeat: Os Cinco Rapazes de Liverpool”, de 1994. Um filme honesto e despretensioso, apesar de romantizado em algumas passagens – nada que tenha prejudicado o filme no geral.

O ator americano Stephen Dorff (que depois estrelaria “Blade: O Caçador de Vampiros”) interpreta Stu. Sheryl Lee, a Laura Palmer do seriado “Twin Peaks”, fez o papel de Astrid Kirchherr. E Ian Hart, que participou da franquia Harry Potter, encarnou John Lennon pela segunda vez na carreira (a primeira foi na produção independente “The Hours and Times”, de 1991). Beatle. Astrid Kirchherr, noiva e viúva do ex-beatle, morreu em 2020 após uma breve doença, aos 81 anos em Hamburgo.
Marcelo Orozco

Marcelo Orozco

Jornalista que adora música, cultura pop, livros e futebol. Passou por Notícias Populares, TV Globo, Conrad Editora, UOL e revista VIP. Colaborou com outros veículos impressos e da web. Publicou o livro "Kurt Cobain: Fragmentos de uma Autobiografia" (Conrad, 2002).

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